domingo, 6 de fevereiro de 2011
A MOCHILA DA MEMÓRIA
Padre Beto
www.padrebeto.com.br
Kim era um garoto órfão que viva sozinho. De cidade em cidade, o garoto Kim procurava sobreviver pedindo comida e abrigo. Certa vez, o menino encontrou em seu caminho um velho andarilho. O simpático, mas sisudo, velho trazia nos ombros uma mochila que parecia ser muito pesada. Depois de um pequeno diálogo, os dois resolveram caminhar juntos. Em um determinado momento, o velho resolveu descansar um pouco e, com alívio, deixou a mochila cair no chão. Ela parecia tão pesada que mesmo um jovem teria dificuldade em carregá-la. "O senhor não quer que eu o ajude com sua mochila?", perguntou Kim, "eu a carregaria para o senhor com prazer. Afinal sou mais jovem e mais forte e o senhor parece estar muito cansado." "Não, obrigado", respondeu o velho, "esta mochila você não pode carregar por mim. Carregá-la é uma tarefa que eu devo realizar sozinho." E o velho ainda completou enigmaticamente: "Talvez um dia você terá sua própria mochila que poderá ser tão pesada quanto esta!" Vários dias e caminhos se passaram e Kim não conseguia saber o que o velho, na verdade, carregava. Em uma noite, o jovem acordou e surpreendeu o amigo sussurrando algo em sua mochila dando a impressão de conversar com alguém. No dia seguinte, porém, nenhum dos dois trocou se quer uma palavra sobre o assunto. Depois de alguns meses, o velho adoeceu e antes de morrer deixou um conselho ao jovem: "Eu carreguei esta mochila durante boa parte de minha vida. Espero que você não cometa o mesmo erro. Tudo vai depender dos teus pensamentos!" Depois que o velho morreu, o pequeno Kim finalmente abriu a mochila e constatou que ela estava vazia.
Em seu livro "Confissões", Agostinho faz, para sua época, uma análise revolucionária sobre o tempo. Este, que até então era vivenciado como um fenômeno cosmológico e um dado objetivo, passou a ser compreendido como um fruto da percepção humana, um produto de nossa subjetividade. Se entendermos o tempo como algo objetivo, ele acaba se reduzindo a um minúsculo ponto, pois como fato concreto o passado já não existe mais e o futuro ainda não é atual. O que chamamos de tempo presente se reduz, como fato objetivo, a um pequeníssimo espaço de passagem entre o passado e o futuro. Quando pensamos em algo, por exemplo, este pensamento imediatamente torna-se passado. Por sua vez, o que ainda não se encontrou neste presente pode até ser uma projeção, mas ainda não se tornou um acontecimento. Por não suportar estar em um simples fluir da vida e tendo a capacidade de guardar as imagens do presente em sua memória, o homem procurou ordenar a sucessão de suas vivências. Desta forma, o ser humano criou para sua consciência uma noção mais ampla do tempo construindo este em uma estrutura tridimensional: presença do passado através da recordação; presença do atual através da percepção e a presença do que há de vir através da esperança. Esta construção humana, a tridimensionalidade do tempo, Agostinho define como uma dilatação da alma (distentio animi). Por esta razão a consciência humana sempre vive na expansão do atual para o passado e o futuro.
Porém, Agostinho não parou por aí. Para o filósofo, a experiência do tempo não somente estabelece uma ordem ao caos da vida mas, principalmente, revela o que somos no agora. Em outras palavras, nós relembramos o passado e vemos uma perspectiva para o futuro através da forma como vivenciamos o presente. A experiência do atual define o conteúdo de nossa história e estabelece perspectivas sobre o que deve acontecer. Dependendo de nossa condição no presente possuímos uma compreensão do passado e descobrimos perspectivas para o futuro. Um presente não tão feliz pode transformar o passado em um tempo dourado e o futuro como o espaço de nossa utopia. Um presente recheado de momentos felizes faz com que, muitas vezes, nos esqueçamos do passado e tenhamos medo do que está por vir. "A imaginação é mais importante que o conhecimento", (Albert Einstein).
Dependendo da percepção do agora, o ser humano pode carregar seus pensamentos, lembranças e esperanças como um fardo significativo que muitas vezes o impede de vivenciar, com liberdade, os atuais acontecimentos. A importância que damos aos fatos, se as guardamos na mochila da memória, o quanto elas pesam e quais as limitações que estabelecem em nossa vida, está relacionado com a nossa atual autopercepção. A nossa versão do passado e os nossos sonhos para o futuro espelham os pensamentos que possuímos no presente. Estes, porém, dependem do bom uso que fazemos da razão. "Para a mente obtusa, toda a natureza é sombria. Para a mente iluminada, o mundo inteiro arde e faísca com luz", (Ralph Waldo Emerson).
Leia mais textos de
Padre Beto