Vladimir Souza Carvalho*
Encontrei os dois em um dos bancos do Parque. Pela aparência, discutiam, embora se mantivessem juntos. Resolvi me aproximar. Nuvem de chuva pairava no ar. Dava para perceber. Por ela, a situação dos dois deveria ser exposta ao juizado de menores, ali na frente, ante a recusa dele de admitir o casamento. O que não se podia era adiar mais a solução. Atirei uma solução outra: esquecer o juizado, ir ao cartório, do outro lado, e dar entrada nos papéis em direção ao casamento.
Ela aceitou, obviamente. Ele, também, mas estabelecendo uma condição: nada de comunhão de bens, o que criou nova etapa de discussão, sim, para um lado, não, para outro, e, eu no meio dos dois, só ouvindo, pedindo para ela ter calma, que tudo se resolvia. Era só um pouco mais de paciência.
Chegamos ao cartório, onde ele se mantinha intransigente: nada de comunhão de bens. Chamei o escrivão para uma conversa de ouvido: colocasse comunhão universal de bensnos papéis que os dois assinariam, que a negativa dele, naquele momento, era fruto de alguma pirraça, que depois passaria. O escrivão ainda levantou a possibilidade Do noivo ler a anotação atinente a comunhão de bens nos papéis, ao assinar. Não vai ocorrer, sentenciei, explicando: ele não sabe ler direito. E não sabia mesmo. Aliás, não sabe.
O casamento foi realizado na igreja, com efeitos civis. No almoço, uma festa. Ele tão alegre que, para não desperdiçar uma sonrisal, que ela pretendia tomar, depois do almoço, a ingeriu, mesmo sem necessidade. A noite, a cerimônia e outra festa, que casamento é sempre adequado para tanto. Dois filhos coroaram tudo. Até onde sei, viveram felizes, se ajustando um ao outro.
Muitos e muitos anos depois, me chega a notícia de ela estar condenada. Uma doença terrível, e no logo alojada na cabeça. Candidata, em potencial, a morte, os dois filhos (o primeiro, um rapaz, tomando a frente de tudo, o segundo, uma moça, administrando o lar na ausência da mãe, que se tornou definitiva, em meio aos estudos da filha).
Chegou-me, enfim, a notícia fatal: ela morreu, já estava sepultada, o que me doeu a consciência de nunca ter aberto um espaço para ir visitá-la, mal para o qual remédio nenhum poderia mais fazer efeito. O dilema de cada um viver sua vida, em torno de seus problemas e desejos, esquecidos dos contatos que devem ser mantidos, mesmo que esporádicos, com os demais membros da família, sobretudo nas numerosas, como a de minha mãe, ao todo, portanto, treze, a imensa maioria procriando e lançando filhos, meus primos, no mundo.
Não pude comparecer ao enterro. Não fui a missa de sétimo dia, por inconveniência do dia e do horário. Não tive contato com ele, o viúvo, meu tio, nem com os dois filhos, meus primos, que a falecida deixou. Enfim, não sai do meu castelo. Quase em seguida, trafegando, de carro, na rua onde ele mora, o vi caminhando, baixo, curvado, parecendo um ancião. E só aí percebi que o tempo estava passando, para ele e para todos nós
* vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Diario de Pernambuco