Djanira Silva
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Olivia acorda sempre à mesma hora, todos os dias.
Leva algum tempo para aceitar o mundo, a vida, as horas. Na verdade, bem que gostaria de continuar dormindo. Precisa se levantar para que a casa comece a existir no cheiro do café, do queijo frito, da banana cozida, do pão assado. Assim, despertam os que ainda dormem. Ela, pelos ouvidos, quando toca o despertador ou quando uma das crianças chora.
Passara o fim de semana na praia com o marido e os filhos. Diversão? Pois sim. Transferência de problemas, e até aumento. Nestes passeios nada muda: o marido bebe um pouco mais, os filhos pequenos brigam entre si, os casados discutem com as mulheres, os netos choram à noite inteira, os amigos chegam para tomar um uisquinho e terminam ficando para almoçar, jantar e dormir. Pratos sujos, casa molhada. Um inferno.
Às vezes sentia vontade de se rebelar contra a mesmice de todos os dias, inverter o mundo, livrá-lo da rotina do café da manhã, do almoço ao meio dia, do jantar à noite. Do costume de ter sempre um cheiro para cada momento. Seria divertido: um perfume forte, almiscarado. Almíscar! Que zona! De manhã cedo, a casa toda recendendo a mijo de gato. E à noite, quando fosse ao teatro, substituir o sofisticado perfume francês por um tempero qualquer como fazia com os refogados.
Lembrou das palavras do Eclesiastes há tempo para tudo.
“Odeio este fogão nunca me acostumei com ele. Aliás, não nos suportamos. Ele me queima e eu toco fogo nele todos os dias. Somos dois estranhos. Uma solidão a dois. Acho que estou ficando louca, onde já se viu pensar besteira? Aqui pra nós, o fogão é mesmo um chato.
“Daqui a pouco estarão, ao redor da mesa, devorando tudo numa pressa danada para não perderem o ônibus. Meus filhos, são meus melhores amigos, claro, entram na minha casa, comem a comida toda, desarrumam tudo, fazem uma desordem dos diabos. Os inimigos não passam nem na calçada.
“A pontualidade à mesa é admirável. Meu marido, o jornal aberto, mexe o café sem prestar atenção, suja o jogo americano que bordei para usar no Natal. As crianças, apesar de educados, não só em casa como nos melhores colégios, devoram tudo numa rapidez assustadora.
“Amo esta família, não viveria sem ela, mas, algumas vezes sinto raiva. Ninguém valoriza meu trabalho. Lavo e passo roupas diariamente. Perco a maior parte do tempo na cozinha. Gostam de comida variada. Será que só tenho deveres? E os direitos? E o cansaço que me faz cochilar quando sento para ler ou ver televisão?
“Para conforto e bem-estar de todos sacrifico não apenas o tempo, também os sonhos e os momentos em que poderia cuidar de mim. Tenho as mãos enrugadas, os dedos esfolados, as unhas roídas no esfrega esfrega de todos os dias, no tanque, na pia da cozinha, na faxina da casa. No entanto, é tão bom quando eles chegam à tardinha e encontram o mundo em ordem: a roupa de dormir dobrada sobre a cama, as chinelas à mão, a mesa posta, a comida pronta. Mas, o diabo é que em pouco tempo a desordem toma conta de tudo. A sala, até então arrumada, torna-se um pandemônio: sapatos sujos em cima do tapete, sacolas sobre a mesa, a televisão ligada sem ninguém na sala, copos sujos na pia da cozinha, a toalha do banheiro fora do lugar, o mármore da pia todo molhado.”
“Não agüento mais, é preciso muita paciência, rezo e peço a Deus que os proteja.”
Pensando neles com ternura, Olívia adormece constrangida.
Obs: Texto retirado do livro da autora – Memórias do Vento