segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
A MOÇA LOURA E O HELICÓPTERO
Maria Clara Lucchetti Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Naquele dia 2 de dezembro de 1980, há exatos 30 anos, duas mulheres saíram em sua caminhonete branca para o aeroporto de Comalapa, em El Salvador. Iam buscar outras duas que chegavam da Nicarágua. As quatro tinham nacionalidade estadunidense e trabalhavam nas zonas mais pobres da capital de El Salvador: o porto da Libertad e o povoado de Chalatenango.
O voo atrasou e um homem, segundo uma testemunha, parecia especialmente interessado nas duas mulheres que esperavam outras duas. Quando o avião finalmente chegou e a caminhonete saiu com as quatro rumo a Chalatenango, o homem que acompanhara a chegada do voo de Manágua estava em companhia de vários outros.
Só os camponeses dos povoados próximos ao aeroporto viram quando a caminhonete foi obrigada a desviar-se para um lugar isolado. E só eles ouviram as rajadas de metralhadora e os tiros secos de revólver. Era a noite de 2 de dezembro. A caminhonete foi encontrada naquela mesma noite, incendiada no acostamento da rua que leva ao aeroporto. Na manhã seguinte, 3 de dezembro, os camponeses encontraram os corpos das quatro mulheres – violentadas, torturadas e assassinadas brutalmente com um tiro na nuca - e foram orientados pelas autoridades locais a enterrá-las em um túmulo comum em um terreno baldio das imediações.
Os homens obedeceram, mas a consciência falou mais alto. Após realizarem o enterro, informaram o ocorrido ao pároco local. A notícia chegou ao arcebispo e ao embaixador dos Estados Unidos naquele mesmo dia. O túmulo foi exumado no dia seguinte, 4 de dezembro, e os cadáveres reconhecidos em meio à perplexidade e às preces das outras religiosas, irmãs de comunidade das vítimas.
Três daquelas mulheres eram religiosas: duas da congregação Maryknoll, Ita Ford e Maura Clark, e uma da Congregação de Santa Úrsula, Dorothy Kazel. Uma era leiga, Jean Donovan, e tinha 27 anos. Filha de uma família de classe média abastada em Connecticut, Jean frequentou bons colégios, formou-se e pós-graduou-se em Administração. Namorava um jovem médico, Douglas Cable, com quem pretendia casar-se e ter filhos.
No meio do caminho da vida que se delineava tão normal e previsível diante da moça bonita de cabelos louros e olhos azuis atravessou-se um chamado irresistível: trabalhar como voluntária junto aos pobres de El Salvador. Jean interpelou a Deus: Por que não podia ser como todo mundo, uma boa mãe de família? Deus não lhe respondeu e reforçou o chamado para a missão junto aos pobres. Jean foi em 1977 e ali ficou, junto com a irmã Dorothy Kazel, no porto da Libertad, ajudando os refugiados da guerra civil salvadorenha e os pobres. As duas providenciavam abrigo, alimento, transporte e atendimento médico aos que necessitavam. Também enterravam os cadáveres dos mortos abandonados pelos esquadrões da morte que varriam o pequeno país centro-americano.
Jean começou a ser vigiada de perto por aqueles que temiam a herança e o legado do arcebispo Oscar Romero e suas palavras proféticas. Apesar de morto, continuava vivo e conseguia convocar para seu combate em favor da vida, contra a violência e a injustiça até mesmo moças jovens, louras e bem-nascidas.
Um mês antes de sua morte, Jean andava em sua bicicleta pelo campo quando percebeu que um helicóptero militar dos Estados Unidos a estava seguindo. Dias depois contou ao embaixador americano, que negou rotundamente que pudesse ser verdade seu relato, já que em El Salvador não havia helicópteros estadunidenses. Jean respondeu candidamente que podia dizer qual o modelo e o nome do aparelho, pois seu pai, um bem-sucedido executivo, trabalhara a vida inteira numa indústria de helicópteros e por esta razão seus filhos conheciam bem esse meio de transporte desde a infância.
O helicóptero detectado pela jovem missionária leiga se transformaria um mês depois em um carro cheio de policiais que violariam, torturariam e matariam seu jovem corpo feito para o amor, a maternidade, a vida. Por que quatro frágeis mulheres inspiravam tanto temor e deviam ser eliminadas de maneira tão brutal?
A resposta está nas vidas de todas elas que constituem em si mesmas uma interpelação muito difícil de suportar. Como conviver com a entrega radical da vida de Maura, Ita e Dorothy que, em lugar de viverem sua vocação nos Estados Unidos, em algum colégio, educando moças de família, se metiam no tugúrio mais pobre do continente para proteger refugiados, enterrar mortos e cuidar de crianças órfãs?
Como olhar nos olhos azuis de Jean e retorcer-se diante da razão pela qual aquela bela moça insistia em deixar para trás sua vida cômoda e glamorosa para arriscar-se junto aos pobres salvadorenhos? Como aceitar que existam pessoas capazes de gestos dessa profundidade e desse alcance?
Os que não suportaram a força dessa interpelação puseram fim à vida das quatro mulheres. Mas outros, muitos outros, 30 anos depois de sua morte, se sentem iluminados e inspirados por seu testemunho. É difícil ler, sem tremer e emocionar-se, a carta de Jean a uma amiga escrita na semana anterior à sua morte, explicando por que ficou em El Salvador: "O Peace Corps foi embora hoje e meu coração se confrangeu. O perigo é extremo e eles tinham razão em sair... Agora eu devo avaliar a minha própria posição, porque eu não estou disposta ao suicídio. Várias vezes, eu decidi deixar El Salvador. Quase poderia fazê-lo, exceto por causa das crianças, os pobres, vítimas feridas dessa insanidade. Quem iria cuidar deles? Que coração poderia ser tão duro a ponto de decidir-se pela única opção razoável em um mar de lágrimas e solidão? Não o meu, querida amiga, não o meu. "
O helicóptero que Jean Donovan avistou e identificou era um aviso. A moça loura cheia de Espírito e coragem não teve medo e permaneceu no lugar onde sentia que Deus a chamava e as crianças pobres a necessitavam.
O Departamento de Estado dos EUA cobrou da família Donovan U$ 3500,00 pela entrega do corpo de sua filha. Na verdade, era muito pouco. Pois aquela vida não pode ser paga com nenhum recurso humano e seu testemunho tem valor infinito.
Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/
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