domingo, 23 de janeiro de 2011

ENTRANHAS


Maria Inez do Espírito Santo
www.mariainezdoespiritosanto.com


Possuída pelas imagens que me chegam, da tragédia de agora, escorro contigo, amiga terra, estagnando minha energia na falta de destino que mostre um sentido pra tanta dor. Com a argila sangrenta que me expõe pelo avesso, deixo de ser fértil e me torno a mãe destruidora que imobiliza e devora.

Volta-me, saudosa, mas quase esquecida, a lembrança da gigantesca cambalhota cósmica que percebi, faz tempo, no encontro das montanhas do Vale do Rio Preto, e da qual nunca consegui explicar a força, que me impactou e comoveu, quase ao êxtase

Mas as águas que me carregam, hoje, torrencialmente, me empoçam no mesmo mangue onde descobri a força dos caranguejos, pulsando na minha infância, afinada com o fabuloso órgão universal que, desde tão cedo, me permitiu ouvir a melodia do silêncio.

Bem depois, à beira do abismo, no que se usa chamar a Independência de Petrópolis (e de onde se pode ver a deslumbrante paisagem da cidade litorânea inteirinha escancarada lá embaixo) sob um céu branco e densamente opaco da chuva longamente armazenada, pronta a se tornar mais e mais desabamento e dor, eu enxerguei (e profetizei em blasfêmico alto tom) um gigantesco desfazer-se das montanhas, no futuro que viria inevitável. Faz tempo que ecoou no espaço tal vaticínio, e ainda lembro o horror que aquela visão/lampejo me trouxe, então...

Foi bem antes disso que, no bom clima de Nogueira, saí um dia, ao anoitecer, para namorar, levando comigo meus filhos, amados companheiros, e muita leveza no coração e, na volta, não havia mais caminho a percorrer. Um pé d’água repentino arrancara e amontoara os paralelepípidos da estrada, transformando-a, em pilhas e pilhas de obstáculos intransponíveis e apagando a possibilidade de acesso ao lar. Foram uma visão e uma vivência tão absurdas, quanto impossíveis de esquecer.

Venho assistindo a força das águas desde o final de novembro passado, sabendo que seria inevitável deixar-me encharcar por essa paixão contagiosa, que só crescia no ar, ameaçadora. Da janela, pinguei densa, nas pesadas e grossas gotas da chuva ininterrupta e, suave, na singeleza da neblina de dias e dias, quando a natureza ruidosa ou silenciosamente, veio anunciando este pranto convulso tão maior, já suspenso no ar e pronto para desabar.

Agora estou aqui, totalmente impotente, longe de meu chão, isolada de minhas convicções, apenas ouvindo, ouvindo e ouvindo explicações, lamentos, revolta e notícias desencontradas.

Queria poder estar escutando minha terra. Queria poder estar olhando cara a cara para ela, buscando prescrutar em seu semblante inconfundível, sua mais nova e urgente comunicação.

Sinto falta dela, daqui, onde me retém o medo, a cautela e onde me cerca o estranhamento.

Estendo mais e mais meu coração, mas não chega a mim a brisa capaz de transportá-lo até o Retiro e estendê-lo no varal, para que dance com as borboletas e gorjeie com os passarinhos, misturando-se, no infinito do tempo, ao arco-íris do monte Ararat e selando o compromisso de harmonia, com um graveto ainda verde da oliveira cultivada por meus ancestrais.

Enquanto isso, doem em mim as incontáveis chagas abertas na terra ferida. A água/sangue não deixa que cicatrizem, sem curar, os antigos ferimentos causadas por descuido e por cegueira incalculáveis.

Sei que hoje a lua esteve cheia em alguma camada, abafada por tantas outras coberturas, no céu empapado de nuvens sufocantes. Queria tê-la visto, clara, para lembrar-lhe o quanto precisamos do luar. E para aproveitar sua luz, como farol, que me levasse ao possível caminho, ainda desconhecido, que me espera, intacto, na volta para casa.