domingo, 16 de janeiro de 2011

CANTO ESPIRITUAL


Dade Amorim
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            Não me considero autoridade no assunto. Nem por isso no entanto deixo de refletir sobre as religiões, um tema universal, que nenhuma cultura ou civilização deixou de lado.
            Sempre tive grande dificuldade de acreditar, não propriamente em um Deus – “o Deus”, como dizia Clarice – mas no que alguém chamou com propriedade de os amigos dele. Para mim, todas as religiões são verdadeiros obstáculos a esse sentimento reconfortante que é a fé. Dogmas, promessas de castigo eterno e coisas no gênero me parecem muito mais um discurso humano do que divino, ao menos no que se refere ao único Deus que consigo imaginar. E na verdade, as religiões, todas ou quase, vivem e prosperam sobre os fundamentos da ameaça e de uma forma de chantagem – ou você acredita e obedece, ou – e lá vem ira divina, cólera do todo-poderoso e frases aterradoras tiradas do antigo testamento. Frases escritas por homens dos quais se afirma terem sido inspirados por uma luz divina.
            O que me parece mais cruel nas religiões é a invasão da liberdade individual e, acima de tudo, a exploração do que há de mais vulnerável na natureza humana – a falta que todo homem carrega consigo vida afora, e o leva a se apegar a qualquer pessoa que lhe pareça apta a preenchê-la. Essa incompletude, a sensação de abandono, o medo da solidão e seus derivados deixam o homem à mercê de quem souber tirar partido deles. Todo homem é um indigente afetivo, incluindo os que se julgam mais espertos, se aproveitam da fraqueza dos outros e depois têm que conviver com a culpa e o medo de sanções. Encontramos gente assim em toda parte. Conhecemos esses seres confusos e escorregadios, que precisam viver sempre alerta para não serem apanhados em flagrante nas ações que sua esperteza os impele a cometer.
            Sei bem que dentro de cada religião existe gente sincera e sensível, gente que chega a ser abnegada por dedicação genuína ao próximo. Fui educada dentro de uma religião, frequentei a igreja durante minha infância e juventude, participei de atividades das quais nunca me arrependi. Mas a gente amadurece e aprende a ser um pouco mais crítica em relação aos acontecimentos e ao comportamento das pessoas. Uma religião institucional, por mais respeitável, abre muitas brechas para a impostura, a hipocrisia e o preconceito. Das menos respeitáveis, essas que se inventam da noite para o dia, nem é bom falar. Mesmo porque, quase sempre o mau caráter de seus fundadores e arautos fala por elas.
            Por tudo isso, e porque a gente sempre se sente um pouco órfã em relação a esse Deus que é mais um desejo intenso do que uma crença tranquilizadora, o poema do catalão José Palau mexeu comigo. Porque ele diz exatamente o que eu gostaria de ter dito, se escrevesse um poema a esse respeito. Ao menos pela beleza das palavras e das frases, que falam dessa humana necessidade de alguém maior em quem se possa descansar a certeza da plenitude.

Canto espiritual


            Não creio em ti, Senhor, mas tenho tanta necessidade de crer em ti, que muitas vezes falo e te imploro como se existisses.
            Tenho tanta necessidade de ti, Senhor, e de que sejas, que chego a crer em ti – e penso crer em ti quando não creio em ninguém.
            Mas depois desperto, ou me parece que desperto, e me envergonho de minha fraqueza e te detesto. E falo contra ti que não és ninguém. E falo mal de ti como se fosses alguém.
            Quando, Senhor, estou desperto e quando adormecido?
            Quando estou mais desperto e quando mais adormecido? Não será tudo um sonho e eu que, desperto e adormecido, sonho a vida? Despertarei algum dia deste duplo sonho e viverei, longe daqui, a verdadeira vida, onde sonho e vigília sejam uma mentira?
            Não creio em ti, Senhor, mas se és, não posso dar-te o melhor de mim a não ser assim: senão dizendo-te que não creio em ti. Que forma de amor tão estranha e tão dura! Que mal me faz não poder dizer-te: creio.
            Não creio em ti, Senhor, mas se és, tira-me deste engano de uma vez.
            Faz-me ver bem a tua cara! Não me queiras mal pelo meu amor mesquinho. Faz com que, sem fim e sem palavras, todo o meu ser possa dizer-te: És.


José Palau, poeta catalão, traduzido por Augusto de Campos.
Postado por Ana Guimarães
Do blog Blocos on Line
http://blocoson.blogspot.com/


Obs: Imagem enviada pela autora.