domingo, 12 de dezembro de 2010

O PAPAGAIO DE MINHA MÃE

Vladimir Souza Carvalho (*)


O papagaio chegou no final do ano. Teria sido o de 1970 ou o de 1971? Não vou me arriscar porque não anotei, nem dei nenhuma importância ao fato. Era um papagaio baiano, mandado de Salvador por Tio Tonho, que, na década anterior, enviara cachorro pequinês lá para casa e para a de vovó Brasília. Mamãe teve um trabalho imenso para tirar o papagaio, ainda pequeno, sem penas, dando suas bicadas na mão de quem tentava lhe tirar da gaiola.

Foi o primeiro e único papagaio que minha mamãe criou. Não sei contar como o papagaio foi crescendo, porque estava preocupado com nortes de namoros, de sorte que o papagaio ficou restrito a uma ave crescendo numa gaiola pendurada numa parede. O certo é a ave foi tomando corpo e penas verdes e amarelas, sem que me aproximasse, a não ser para pequenos agrados de dé cá o pé meu louro, que nunca foi atendido, ameaçando-me o papagaio, logo, com seu bico pontiagudo. Amizade e intimidade só com mamãe, que, afinal, lhe enchia de cuscuz, de semente de girassol, encarregando-se, diariamente, de limpar sua gaiola, de colocar água e frutas diversas, de lhe acariciar a cabeça. Com papai, nem a mais leve aproximação, o mesmo se afirmando com Bosco.

Com os netos de mamãe, o papagaio aprendeu a falar a palavra avó, e, com as pessoas que chamavam mamãe da porta, passou a se utilizar também do nome Maria. Muitas vezes, em dias de sábado, descansando ou lendo na rede, o papagaio por perto, em sua gaiola, ouvia, quando o telefone tocava e mamãe demorava a atender, ele, como se fosse um vigilante atento, gritar um Maria bem alto, como a alertá-la para o telefone.

Uma vez, o papagaio voou. Demoraram a lhe cortar as asas e o papagaio ganhou os ares do desconhecido. Deus do céu! Foi notícia em carro de auto-falante, na Rádio Princesa da Serra, prolongando-se na busca de diversas pessoas pelas ruas, pergunta a um e pergunta a outro pelo papagaio de minha mãe, até que, com todas as graças de todos os deuses, chegou a notícia de um papagaio ter aparecido em um sítio, nos arredores da Maternidade, para onde mamãe, rapidamente, se dirigiu. O proprietário do sítio exigiu que o papagaio identificasse mamãe. E os dois juntos se dirigiram a casa de farinha, onde o papagaio, de calado que estava em casa estranha, ao ouvir a voz da dona, começou a andar de um lado para outro no poleiro da gaiola, a abrir o bico e dizer vó, vô, as asas da cabeça se erguendo, dispensando, desta forma, qualquer outro sinal de identificação da proprietária ali presente.

Mas o papagaio era ciumento. Não gostava de ver mamãe arrumada, nas viagens que tinha de fazer para Aracaju. Não se atrevesse a se aproximar do papagaio com roupa diferente, que ele não respeitava os mimos e partia para as bicadas. Mamãe, com o tempo, foi aprendendo a conviver com o papagaio, evitando se despedir dele quando os cuidados médicos recomendavam sua ida até Aracaju. Só na volta, o papagaio já recolhido ao banheiro, era que se dirigia para cumprimentá-lo e ouvir a alegria do seu canto, ao ver a dona de volta.

Um dia, quase quarenta anos depois de sua chegada a Itabaiana, o papagaio deu um vôo inesperado e desapareceu. Começou a procura, no telhado de casa e das casas vizinhas, o receio de algo diferente daquela primeira vez anterior, e, no dia seguinte, em nova busca, já com as esperanças se esvaindo, o papagaio foi localizado, numa telha, meio escondido, tragicamente morto, como se tivesse sofrido uma dor que o fez voar para o telhado próximo, onde, longe de sua dona, veio a falecer. Necessário acrescentar que o papagaio foi enrolado em um pano, e, sepultado no próprio quintal da casa de mamãe, sem que ela tivesse tido a coragem de presenciar o ato final.

Quase quarenta anos de contato diário se acabava assim. O canto de vó e de Maria, além de outros, como meu fuscão preto, nunca mais. Dói dizer e registrar. Mamãe permaneceu calada, a saudade do papagaio maltratando o coração, e não foi outra solução senão a de bater as portas do consultório médico do Dr. Luiz Carlos Andrade, que, ante o estado físico e mental apreciados, perguntou, de logo, qual a contrariedade tida e passada. Era a morte do papagaio, cujo retrato, por mim batido, estava pregado a um quadro, na sala principal da casa, onde, até hoje, uns cinco anos depois, ainda permanece.

Da passagem do papagaio lá por casa, me lembrei, também com muita saudade, quando, em plena sessão da Terceira Turma, com a toga de julgador de segundo grau, participei do julgamento de um agravo de instrumento, no qual o relator mantinha sua decisão inicial no sentido de compelir o IBAMA a devolver a uma senhora, ali agravante, o papagaio que tinha apreendido em sua residência. E, sem querer, parei alguns minutos para pensar no papagaio de mamãe e, confesso, também me invadiu uma certa nostalgia, embora, em quase quatro décadas de existência, não tão diária como a de mamãe, não tivesse o bicho, uma vez sequer, atendido aos meus pedidos de me dar o pé.


(*) vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Correio de Sergipe