domingo, 12 de dezembro de 2010

O CORAÇÃO DA PAREDE


Djanira Silva
djaniras@globo.com
http://blogdjanirasilva.blogspot.com/


          Quero magoar esta parede branca, feri-la com portas e janelas. Desenhar um rosto sem olhos, sem boca, sem nada, um rosto que eu possa apagar todos os dias e acender todas as noites.
          Quero sufocar no seu coração o relógio do tempo que bate desenfreado, parindo o dia, matando as noites num jogo de eternidade e esperança que não desiste de procurar a direção do tempo que nos faz beber da mesma taça, respirar o mesmo ar, viver no mesmo espaço.
          Lá fora, o dia cai aos pedaços, nas cores, nos cheiros, nos pingos de uma chuva miúda que amadurece lembranças.
          Olhar, olhar e ver, ver ou não ver, ouvir e escutar num abre e fecha, num entra e sai, num vai e vem.
          Minha alma está sempre desertando. Corre atrás da primeira saudade que passa. Então, represento meus papéis. Troco de máscaras a cada representação. Não posso viver feito o caracol carregando nas costas sempre a mesma casa. Enquanto lembro, sou o que lembro. Para esquecer fecho nos olhos das sombras o quintal.
          Sou uma promessa de mim em cada coisa. Eternizada nos retratos, envelheço os espelhos. Risco-lhes o mercúrio e desapareço nas linhas tortas de mim.
          Quero apagar o branco desta parede que me olha como quem sabe de coisas que eu não sei, como quem viu coisas que não vi. Adormeço no fosco do espelho ausência presente enquanto durmo e me acorda a luz magoada de um amanhã que não encomendei.
          Espero, a cada hora, a redenção, de ter nascido, a remissão de ter vivido. Não sei. “Morrer dormir, talvez sonhar... quem sabe?” Palavra de rei não volta atrás. Devagar eu fui bem longe e cheguei cansada. Mantenho sob custódia o pensamento. Persigo idéias e volto sempre sozinha.
           Deixei pelos caminhos, rostos vermelhos, sorrisos amarelos, e uma saudade roxa, uma só, apenas uma.
          De mangas verdes enchi o meu quintal. Nas paredes encravei rosas jasmins e margaridas.
          Atravesso o silêncio vou morar nas sombras, ali se escondem as infâncias. Faço isto em memória de mim.
          Na parede pulsa o coração do tempo.


Obs: Texto retirado do livro da autora – A Morte Cega