terça-feira, 21 de dezembro de 2010
NOEL ROSA: O FEITIÇO QUE NÃO ACABOU
Maria Clara Bingemer,
professora do Departamento de teologia da PUC-Rio
Cem anos de Noel, certamente um dos maiores, talvez o maior compositor popular brasileiro. E não saio de meu espanto com duas coisas: a primeira é como uma pessoa que morreu tão jovem – aos 26 anos – conseguiu criar tanta música bonita, até hoje encantando e enfeitiçando ouvidos e corações. A outra é a pouca importância que a mídia dá ou parece dar a esse acontecimento.
Qualquer espirro de um jogador de futebol, de um roqueiro, merece mais espaço que o centenário do genial compositor com pouco queixo, saúde frágil, vida breve, mas muitíssimo e transcendente talento. Autor de peças imortais como: Fita amarela, Feitiço da Vila, Três apitos, O orvalho vem caindo e por aí vai, Noel perenizou Vila Isabel e o Rio de Janeiro em suas canções.
O bairro de Noel, Vila Isabel, tornou-se mitológico e imortalizado devido à lira do compositor. Com sua verve de poeta, Noel disse que ali na Vila, quem era bacharel não tinha medo de bamba. E proclamou que se São Paulo dava café e Minas, leite, o que a Vila tinha de melhor para dar era samba. E como dava!
Tanto samba e de tanto poder sedutor fez o jovem Noel, de família de classe média, estudante do tradicional Colégio São Bento e da Faculdade Nacional de Medicina largar tudo e optar irremissível e apaixonadamente pela boemia. Fumando, bebendo, se apaixonando, namorando mulheres permitidas ou proibidas, Noel varava as noites enchendo de beleza o cancioneiro carioca e brasileiro para todo o sempre.
Noel, na verdade, é cronista de uma época. Época de ouro, de encanto e beleza, durante a qual o Rio de Janeiro era sinônimo de vida agradável, musical, boemia. A capital do amor, certamente. Tanto assim que a discografia de Noel é amor do princípio ao fim.
Amor e boemia. Amor naquela época combinava com luar, samba, violão, noites em claro. Música para celebrar os amores vividos e bebida e mais música para esquecer os amores impossíveis. Evidentemente que em um universo assim não havia lugar para especulações sobre dinheiro. O boêmio é sempre duro e tem que pedir ao garçom, em uma conversa de botequim, para pendurar a conta da média não requentada e do pão bem quente com manteiga à beça que acabou de comer.
Noel dá testemunho dessa época durante a qual o amor era obsessão e enchia a vida inteira, desde a alvorada até o anoitecer, emendando dia com noite e fazendo o amante não ter outro assunto a não ser a amada. A canção Três apitos marca o ritmo do dia da amada que se dirige ao trabalho na fábrica de tecidos. Naquele momento, soa o primeiro apito. No segundo, o poeta pensa na mulher que ama fazendo pano e faz versos para ela junto ao piano. No último, o apito se confunde com a buzina do carro que tenta chamar a atenção daquela que só obedece ao apito de uma chaminé de barro e às ordens do gerente impertinente.
Noel Rosa também é um dos principais compositores brasileiros com verdadeira devoção pela mulher, pelas mulheres em geral, e, sobretudo, por aquelas que lhe convocavam o afeto e o coração. Apesar de casado com Lindaura, são conhecidos os relacionamentos do compositor com outras mulheres, presentes em seus versos e sua vida. A admiração de Noel pela mulher como obra-prima da criação assume proporções enormes, a ponto de fazer pensar analogicamente no discurso dos escritos de cavalaria, quando os guerreiros lutavam por Deus, pelo Rei e pela amada de seus pensamentos.
Talvez a maior comprovação dessa fervente admiração de Noel pelas mulheres esteja em um de seus principais sambas, o belíssimo Fita Amarela, onde o poeta deseja que em seu enterro, “a mulata sapateie sobre o seu caixão “. Prefere isso a choros e velas de gente hipócrita que o fez sofrer em vida e agora finge que lamenta compungida sua perda.
Não tinha muitas ilusões sobre a condição humana, o sensível Noel, de quem a tuberculose nos privou aos 26 anos, após ter composto mais de 300 canções que até hoje nos enfeitiçam e deslumbram com sua beleza. Certamente daria um sorriso de canto de boca ao constatar que se não fosse o empenho de Martinho da Vila, seu centenário passaria em branco até para a escola de samba do bairro que ele imortalizou.
Graças a Deus a autoridade de Martinho da Vila se impôs e o GRES Unidos de Vila Isabel adotou como enredo a vida de Noel Rosa, com o samba intitulado Noel: A Presença do "Poeta da Vila”, de autoria do próprio Martinho. O desfile da Unidos de Vila Isabel se deu na segunda-feira de carnaval, no dia 15 de fevereiro deste ano. Quinta a desfilar, recebeu a quarta colocação.
Muito pouco para Noel. Mas para nós, que amamos a música, a beleza e o Rio de Janeiro, fica seu legado inesquecível. O feitiço de seu talento que não morreu. Diante de sua partida, só nos resta cantar, saudosos, com Silvio Caldas e Sebastião Fonseca, a canção-elegia.
VIOLÕES EM FUNERAL
VILA ISABEL VESTE LUTO,
PELAS ESQUINAS ESCUTO,
VIOLÕES EM FUNERAL.
CHORAM BORDÕES, CHORAM PRIMAS,
SOLUÇAM TODAS AS RIMAS,
NUMA SAUDADE IMORTAL.
ENTRE AS NUVENS ESCONDIDA,
COMO DE CREPE VESTIDA,
A LUA FICA A CHORAR.
E O PRANTO QUE A LUA CHORA,
GOTEJA, GOTEJA AGORA,
NOS OITIS DO BOULEVARD.
ADEUS CIGARRA VADIA,
QUE MESMO EM TUA AGONIA,
CANTAVAS PARA MORRER.
TU VIVERÁS NA SAUDADE,
DA TUA GRANDE CIDADE,
QUE NÃO TE HÁ DE ESQUECER.
ADEUS POETA DO POVO,
QUE RESSUSCITAS DE NOVO,
QUANDO NA MORTE DESCAMBAS.
SINHÔ, DE PELE MAIS CLARA,
NO QUAL O SENHOR ENCARNARA,
A ALMA SONORA DOS SAMBAS.
MEU VIOLÃO CHORA TANTO
SOLUÇOS E MUITO PRANTO
SOBRE O CAIXÃO DE NOEL
ESTÁCIO, MATRIZ E SALGUEIRO
TODO O RIO DE JANEIRO CONSOLA VILA ISABEL.
Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/
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