PARTE IV – TRAÇOS TEOLÓGICOS EM TEXTOS POÉTICOS:
HINO A CRISTO NA LÍRICA GREGA PRIMITIVA
Ir.Emanuela Mélo de Souza
emasouza@hotmail.com
Luiz Carlos da Vila e Adélia Prado são nossos contemporâneos: nasceram no século XX. Voltamos, agora, no tempo, cerca de dezoito séculos, e encontramos no tesouro da tradição, uma pérola rara, um hino pertencente à era paleocristã, o Ó Luz gozosa.
Todos os povos celebraram suas façanhas nacionais com poesias e cantos. Também o Povo de Deus, desde o princípio, quis recordar a obra salvífica com hinos, como o cântico de Moisés após a libertação do Egito (Ex 15, 1-18). E, no Segundo Testamento, encontramos o Magnificat (Lc 1,46-55), o Benedictus (Lc 1,68-79), o Nunc dimittis (Lc 2, 29-32) e outros dos quais nos fala Paulo (Ef 5,18). Todos cantam a redenção.
Estes cantos cristãos não usam nenhum cânon métrico regular, mas estão escritos numa linguagem solene e de exaltação, conservam o paralelismo de seus membros e são influenciados pela literatura helênica. Eram com frequência cantados, embora continuem na forma de prosa.
No século II, porém, começam a surgir da espontaneidade criadora e da fé entusiasta das assembléias cristãs, formas peculiares de oração como as aclamações, as doxologias e os hinos métricos de caráter cristológico e litúrgico. Tais hinos são mais abundantes no mundo gnóstico que no católico, pois neste houve algumas restrições.
O mais famoso dos hinos é Ó Luz gozosa!(= Φος ιλαρον), que ainda subsiste no Ofício Vespertino da liturgia dos pressantificados da Igreja Grega. Estima-se que este hino seja do século III, mas não se pode precisar com exatidão a sua data. O autor é desconhecido, mas deve ter sido um insigne liturgo. Seu nome o conhece Deus; o mundo o ignora. É bom que o hino seja anônimo. Assim, pertence a todos porque é da Igreja.
O hino Ó Luz gozosa é uma apóstrofe doxológica ao Logos de Deus em perspectiva trinitária; confessa e reconhece a preexistência e a proexistência do Verbo de Deus, Jesus Cristo. A Ele se referem as duas palavras do monograma que se vê sobre as portas de alguns templos gnósticos: Luz e Vida.
Ó Luz gozosa!
1. Luz gozosa da santa glória
do Pai imortal,
celestial, santo: feliz
Jesus Cristo.
2. Vindo o ocaso do sol,
vendo a luz da tarde,
cantamos ao Pai e ao Filho
e ao Santo Espírito de Deus.
3. És digno em todos os tempos
de ser louvado por santas vozes,
Filho de Deus, que nos deste a vida,
pelo qual todo o mundo faz festa.
O hino é litúrgico e foi composto para ser cantado, não por um solista, mas por uma comunidade, e é quase certo que era acompanhado por instrumentos; provavelmente o alaúde, a lira e a harpa.
O autor entra na assembléia e com ela canta, usando a primeira pessoa do plural. O poema consta de três estrofes de quatro versos, escritos em prosa grega, sem métrica. A primeira estrofe abre, e a terceira encerra um círculo que abraça a segunda (A-B-A), forma literária de origem pressocrática. As três entoam o hino litúrgico de louvor vespertino.
A primeira estrofe decanta uma cristologia preexistente, eclesial e gloriosa. As três grandes palavras: Luz, Pai e Jesus Cristo estão postas em relevo por sua colocação destacada: princípio, meio e fim da estrofe. Proclamam bem alto que Jesus Cristo é a Luz do Pai. Sugerem o “Eu sou a Luz” do quarto evangelho como fonte inspiração (Jo 8,12)... Os adjetivos (gozosa, santa, imortal, celestial, santo, feliz) todos tomados do Segundo Testamento, expressam solenidade e exaltação, emoção e alegria. Toda a estrofe é uma vibrante apóstrofe da comunidade a Jesus Cristo, que recebe a oração, o canto, o louvor.
A segunda estrofe sustém uma doxologia trinitária, litúrgica e eclesial. A assembléia confessa sua fé na Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. O poeta cristão dá impressão de que a comunidade sabe que a luz do sol que se põe cede lugar à luz radiante e gozosa do verdadeiro Sol, que é o Filho de Deus, Jesus Cristo. Nesta estrofe se desenham a paz, a serenidade e a quietude das Três Pessoas Divinas, em contraste com a emoção, movimento e júbilo da assembléia, refletidos na estrofe anterior.
A terceira estrofe desenvolve uma cristologia proexistente, passiológica e eucarística. A comunidade cristã alcança o objetivo de sua reunião: cantar ao Filho de Deus seu cântico inspirado, pois Cristo merece que sempre lhe seja feita menção.
O Filho de Deus sendo proexistente, “é para os outros”: dá-nos sua vida, no-la deu na cruz e continua no-la dando na eucaristia.
A hipérbole do último verso é compreensível pelo ambiente de fé exultante que vive a comunidade. O poeta vê o universo em festa, crê na bondade da criação contra a doutrina dos gnósticos e proclama a cristificação do universo.
Em todo o hino, o poeta cristão reflete equilíbrio, moderação e paridade de termos: nomeia a Deus, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Mas, sobretudo ressalta o nome de Jesus ante nossos olhos que o vêem como o Pantocrátor dos ícones.
Todos estes recursos teológicos e literários fazem que este hino seja uma jóia da Lírica Grega dos primeiros séculos do cristianismo.
Eis a adaptação deste texto do século III, feita por Reginaldo Veloso:
Luz radiante
Refrão: Luz radiante, luz de alegria,
//: luz da glória, Cristo Jesus! ://
1. És do Pai imortal e feliz
o clarão que em tudo reluz!
2. Quando o sol vai chegando ao ocaso
avistamos da noite a luz!
3. Nós cantamos o Pai e o Filho
e o Divino que nos conduz!
4. Tu mereces o canto mais puro,
ó Senhor, da vida és a luz!
5. Tua Glória, ó Filho de Deus,
o universo todo seduz!
6. Cante o céu, cante a terra e os mares
a vitória, a glória da cruz!
O Ó Luz gozosa ganhou esta feliz adaptação, que é usada nas celebrações da luz ou lucernário. Obviamente, não é uma tradução literal do antigo hino, mas conserva o sentido do mesmo. No centro do louvor está o Cristo, a luz que não tem ocaso, a luz que nos arranca das trevas da morte. O refrão reforça essa centralidade pascal. A melodia é bastante simples, porém, graciosa e bela. Este hino é apropriado para os ofícios de Vigília do domingo, no Tempo Comum.
Obs: Imagem enviada pela autora.
Abraço – Escultura de Ceschiatti (Museu de Arte da Pampulha-BH
Foto de Claudio Costa com solicitação de autorização concedida.
A PARTE V – Conclusão - será postada no próximo dia 07 de dezembro.