domingo, 21 de novembro de 2010

SALVAR A IDENTIDADE AFRICANA



EM HOMENAGEM AO 20 DE NOVEMBRO
Sebastião Heber
shvc50@gmail.com


A escravatura provocou uma ruptura muito grande na vida do escravo negro.Ele era arrancado à força de sua terra, dos seus costumes, do seu clã, e no novo mundo ao qual era transportado, fora colocado numa sociedade totalmente diferente da sua e era identificado com o estrato social mais inferior.

Tudo levava a crer que a cultura africana transplantada, dessa forma, para outro continente, tenderia a desaparecer depressa. O universo dos símbolos, os valores de consciência e de grupo, tudo fazia parte de uma civilização que fora excluída do seu ambiente natural.

Como a cultura foi o único elemento que o negro pode trazer consigo, representava a sua reação a tudo de negativo que a escravidão lhe imputava.

Sabemos como as Irmandades e Confrarias representavam o “suporte” da sobrevivência negra , situação paradoxalmente criada pelo branco que jamais objetivou alimentar uma consciência de classe mas queria, simplesmente, dividi-los entre si.

Muitas vezes a História condiciona a caminhada e a interpretação dos fatos. A discussão de todos os aspectos de um fenômeno é sempre condicionada a partir daquilo que interessa a um determinado setor da sociedade. Nesse sentido, a escrita da História é sempre um ato de poder e ela tem uma dimensão política da qual ninguém pode escapar. Tantas vezes os que foram vencidos, sepultaram-se no silêncio da realidade cotidiana.

No cristianismo dá-se o inverso : a derrota da cruz é que é o ponto de vitória, é um trampolim; é a alegria que vem a partir da memória de um sofrimento que foi vencido, a partir da anti-história. Assim, devemos lançar um olhar sobre o esforço que os escravos fizeram ao longo dos séculos de cativeiro, para salvarem o que tinham perdido de mais precioso e de maior valor : a sua identidade. Desse modo, podemos dar a palavra ao vencedor e deixar que os seus gestos falem.

Sendo subordinado econômica, social e religiosamente, o negro viu destruído o seu sistema de valores. Essa destruição não foi, entretanto, natural e espontânea, mas em virtude de um processo de desenculturação, posto em prática, pouco a pouco, pelo escravagista. A desenculturação é o processo pelo qual se desvaloriza a cultura de um povo, os elementos que a integram são desarticulados, até que, finalmente, desapareçam. No caso do escravo, o objetivo era a submissão, pois só assim poderia ser utilizado como força de trabalho barato em todos os setores que se faziam necessários. É de se considerar que o mecanismo de defesa dos negros foi um processo que nem sempre esteve consciente.Desagregado nas suas nações de origem , o escravo sentia-se, pouco a pouco, bem entre os seus, mas ao mesmo tempo, era estimulado às rivalidades entre as outras etnias e, sobretudo, evitavam-se que eles alimentassem uma consciência crítica que os impulsionasse à luta pela liberdade. No Brasil esse processo não pode ser deflagrado com pleno êxito, pois os negros reagiram e dedicaram-se a conservar com afinco a sua cultura, usando vários meios. Em certo aspecto, eles sentiram um corte brusco, radical, nas suas tradições ergológicas, mas, ao mesmo assim, puderam conservar intactas certas dimensões de valores, como por exemplo, “ sua índole espiritual, graças aos subterfúgios e às atitudes de aceitação do que lhes era imposto, particularmente a nova religião”, conforme diz Roger Bastide.

As estruturas sociais do negro foram destruídas ao longo da escravidão, mas os seus valores foram conservados e, pouco a pouco, foram surgindo novas instituições adaptadas à nova realidade, com um toque de originalidade, que permitiram a sobrevivência cultural e foram o suporte da conservação desses elementos culturais. Dentre os valores mais bem conservados e que mais significavam para a vida do negro, eram, sem dúvida, os religiosos e místicos nos quais eles se refugiavam e que ninguém podia arrebatar. Por isso é que, com a destruição racial das linhagens, dos clãs,eles se apegavam mais aos seus ritos, seus deuses, que eram, na verdade, o único tesouro que puderam trazer consigo.

A destruição da religião é, consequentemente, a destruição da cultura, por que cultura e religião são sempre indissociáveis. Sob essa ótica, podemos dizer que a cultura negra foi preservada enquanto os escravos salvaguardaram seus valores religiosos.


Sebastião Heber, Professor Adjunto de Antropologia da Uneb, da Faculdade 2 de Julho e da Cairu. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, da Academia Mater Salvatoris .