Dade Amorim
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A assombração teve seu primeiro registro conhecido à saída do jardim do Éden, no exato momento em que Adão e Eva transpunham o enorme portão lavrado pelos arcanjos encarregados da decoração local. Posto o pé do lado de fora do paraíso, a voz tonitruante do criador deve ter soado a seus ouvidos escaldados como coisa do além – o que de fato era. Mas o além era o jardim das delícias perdidas, a lembrança do que era doce e se acabou. Identificada à vida intra-uterina do feto, todos nós carregamos essa nostalgia do paraíso.
Isso deve em parte explicar por que as pessoas gostam tanto de histórias de assombração, que provocam medo de um suposto desconhecido – na verdade bem conhecido. Atração e repulsa, fascínio e terror por uma realidade que não se sabe bem como será, da qual se guarda apenas uma lembrança vaga o bastante para parecer ilusória, mas tão convidativa que dá medo.
Não sei se me expliquei bem. Com certeza, não. É difícil falar do além de modo claro. Não faria sentido, mesmo que procurasse explicar a coisa a fundo, porque a assombração é antes de tudo um não-sentido. Quem poderia explicar com exatidão matemática "O corvo" de Poe? Não restariam nem as penas. Aquilo a que falta consistência lógica deve manter-se em seus próprios domínios, que são sutis e incompatíveis com o passo-de-ganso da razão. A lógica está para o mistério assim como a criptonita está para o Super-Homem; se tentarmos explicá-lo ele se esfarela e desaparece, porque à luz da razão vira pura bobagem.
Não é bobagem, no entanto. Apenas pertence a outra dimensão da realidade. A julgar por seu sucesso nas histórias de ficção de todos os tempos e lugares, filmes e causos contados ao pé do fogo nos sertões do Brasil, assombração é coisa séria. E tem seus parâmetros: pode não passar de impressão, se for mera menção; se for demais, é cafona como os cordões de ouro no peito do traficante.
Pessoalmente gosto de uma assombração moderada, vista ou entrevista por pouco tempo. Nada de rostos em decomposição, vermes furando a pele ou garras perseguindo inocentes pedestres em corridas desabaladas pela rua. Assombração que se preza tem que ser uma presença mais sugerida do que presente. Tipo aquele casal de A outra volta do parafuso, de Henry James, que deu filmes sensacionais com aquele chamado Os inocentes.
O que me dá agradáveis arrepios é a idéia de uma presença invisível ou que se manifesta por indícios, que deixa sinais ou apenas se mostra de relance, como se fosse uma ilusão de ótica, e no entanto altera a ordem natural das coisas.
Alguns livros ou textos afins ao assunto falam de pessoas e acontecimentos que nem mesmo podem ser rotulados como histórias do além, mas causam um efeito similar sobre seus leitores. Está nesse caso o realismo fantástico de algumas obras de autores como Borges, Cortázar, Bioy Casares ou García Márquez.
Está nesse caso também um romance de 1954, chamado A menina morta, do brasileiro Cornélio Penna, em que a força da personagem-título se manifesta sobre a realidade sem que haja qualquer evocação ou interferência positiva de um fantasma do tipo tradicional. Penna, cujo trabalho envolve um clima opressivo, era um caso quase isolado entre os autores de seu tempo aqui no Brasil. Assim como aconteceu com Clarice Lispector, que deixou textos enigmáticos ou sombrios como "O ovo e a galinha", "A princesa", "O pequeno monstro" e algumas histórias de Onde estivestes de noite, entre outros. O estranho e o insólito pontuaram a grande maioria dos textos de Clarice, que não por acaso chegou a ser considerada bruxa. Um outro exemplo de romance marcante, mergulho no mundo subjetivo de seus personagens, é A crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, cuja narrativa envolve o que se poderia entender como o processo de geração do fantasma – por assim dizer, um fantasma avant la lettre.
A meu ver, o papel – e atrativo – principal da assombração é que ela manifesta aquilo que está desde sempre dentro de cada um de nós, mas vive preso, escondido no porão, trancado a sete chaves porque, uma vez liberado, faria de nós seres indesejáveis, incapazes de conviver em sociedade e politicamente incorretíssimos. A figura do estranho, da pessoa ou coisa que provoca horror ou medo, não seria tão ambígua e atraente se não correspondesse a alguma coisa com que todos estamos secretamente familiarizados – embora pensemos sempre nessa coisa como uma entidade com existência própria. Assombração não é feita para assustar (embora em geral assuste, por uma espécie de efeito colateral). O estranho existe para nos fazer viver a vida de modo mais completo, já que viver é muito mais do que pagar contas no banco, namorar ou ir ao cinema.
Expor os sentimentos humanos mais sombrios e escondidos sob a forma de seres ou fatos enigmáticos e sinistros pode ser um modo criativo e muito refinado de ampliar o conhecimento do mundo e das pessoas, visto de uma perspectiva nova e esteticamente rica. Uma percepção que não obedece ao habitual e rotineiro pode nos abrir os olhos para ideias como a do tempo em sua dimensão esmagadora e implacável. Pode nos dar a perceber, como num espelho, o vazio que cada um de nós carrega vida afora, por mais que conquiste sucesso, dinheiro e até amor e amizade.
Obs: Imagem enviada pela autora.