Vladimir Souza Carvalho *
Nunca vi um profissional errar tanto quanto um juiz. Parece até jogador de futebol que passa a semana inteira treinando, e, nos meios dos treinos, os chutes a gol, e, assim mesmo, no momento da partida, não consegue assinalar um só tento. Assim, o juiz. Só faz despachar, decidir e sentenciar, além de audiências, e, apesar de toda a formação universitária, da aprovação em concurso difícil, da experiência adquirida no dia a dia do fórum, o juiz continua errando.
Pelo menos é a que a parte, inconformada com o julgado, lhe atira na cara. O juiz erra por omissão - erro mais infantil, porque há uma matéria importante, de tão fundamental que analisada, daria ao decisório uma direção diferente. O juiz, no entanto, por cegueira, talvez, não aborda a matéria, transformando a omissão em realidade.
Erra, ainda, por contradição, pior ainda. Afirma uma coisa e conclui com outra. E aí não é nem erro formal, é questão de caráter, porque revela uma personalidade escorregadia, a medida que defende uma posição o tempo inteiro, e, no momento mais sagrado da decisão, conclui de forma diferente. É como se fosse um vascaíno doente, e, no final, se deixasse fotografar com a camisa e a bandeira do Flamengo, quando este faz um gol.
E o erro via da obscuridade? Que coisa feia! Ninguém sabe o que o homem quer dizer em seu julgado. Sua decisão se cerca de afirmativas que não levam a nada, como aquela ponte, que a televisão já mostrou, construída no meio do mato, onde não havia rio algum, nem utilidade nenhuma. Uma ponte desligada de rio.
Se na primeira instância, com toda a empáfia que me cercava por estar sempre em dia com as decisões, sem reter em mãos feitos pendentes de sentença, poucas vezes me vi pressionado com os embargos declaratórios, agora, na segunda, me revelo julgador que erra, umas vezes por omissão, outras, por contradição, outras, por obscuridade. É o que sinto, semanalmente, quando me trazem ao gabinete os embargos declaratórios movimentados de julgados em que sou relator. E aí, pacientemente, ao abrir cada página, para ler as razões que fundamentam cada ataque, é como se estivesse a receber na cara a advertência da velha professora, de palmatória na mão, a apontar-me, com o dedo em riste, os meus erros, a me dizer que, apesar de velho, continuo errando.
Os embargos de declaração, porta aberta para aclarar o julgado, se alimentam da omissão, da contradição e/ou da obscuridade, para chamar o juiz à atenção. Na maioria das vezes, cada decisão provoca o uso dos embargos declaratórios, porque, na visão de quem perde [começo a ingressar, finalmente, na parte interessante da conversa], o juiz nunca está certo.
Eis a grande verdade, meus ilustres senhores. O juiz sempre erra, porque, na realidade, está a decidir um conflito, e, no aspecto, se decide que o sol nasce no norte, o habitante do sul afirma que o magistrado errou. Se decide que o sol aparece no sul, faz com que o habitante do norte lhe crisme a decisão do defeito do erro. Não obstante a sua cultura, começa a catalinária do arrazoado, o juiz errou ao decidir desse ou daquele jeito, ou, em suma, ao decidir.
Não sei se existe profissão onde se erra mais do que na magistratura. Já me conformei com minha condição de juiz, porque não tenho mais como procurar outra. Mas, reconheço: o erro, na maioria das vezes, não é do juiz. O erro é da visão parcial da parte, interessada em que a decisão venha consagrar sua pretensão, do mesmo jeito que o jogador de futebol derruba o adversário e levanta a mão para dizer que é inocente. O juiz é apenas um profissional no meio de duas raposas que se revelam sedentas de vitória. Se uma não obtém a decisão favorável, a culpa recai no juiz, cravando o seu decisório de errado. É o que tenho visto há tantas e tantas luas na toga de magistrado.
Daí os embargos declaratórios, no fundo, a esconder apenas a certeza de que alguém tem de ser culpado pelo insucesso da pretensão, alguém, entenda-se, que não seja a própria parte. E, a culpa é do juiz, que, desta forma, paga o pato.
* vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Diario de Pernambuco