Euza Noronha
Em pleno banho, minhas duas forças contrárias resolveram se enfrentar. Debaixo do chuveiro, calmamente cantando, o ponto final. Sentado na banqueta, em postura agressiva, o et cetera.
O ponto final nunca deu atenção ao et cetera. Sempre o tratou como pontinhos marginais que vivem querendo interferir em suas decisões. O et cetera, sempre tranqüilo, segue paralelamente traçando novos barcos e novos portos. Mas hoje, o tranquilo acordou bélico e cheio de pontos argumentativos. O assunto merecia sair da marginalidade: amor.
- Nem venha. Demorei para me decidir mas meu ponto é definitivo. Amor não é ressuscitável.
- Pois eu digo que este advérbio não se aplica ao que não morreu. Você preferiu ignorar a existência da minha linha argumentativa e arbitrariamente encerrou o assunto. Mas ele está de volta e crescendo como uma enchente que transborda o rio.
- Sem retóricas e metáforas. A porta não está mais entreaberta, somos apenas bons amigos.
- Então explica aquela vontade que fica de transpor a linha da amizade, entrar nas letras e perder-se nas entrelinhas? Esta é a vontade que vem sendo escrita dentro das minhas linhas e que você ostensivamente vem ignorando.
- Toda amizade entre um homem e uma mulher mexe um pouco com a libido. É bíblica esta explicação. Vem de Adão e Eva.
- Não use argumentos tangenciais. Há muito venho acumulando palavras não ditas, sentidos que não se expressam, sentimentos que se escondem. E de tanto guardá-los, um dia implodirão. Melhor então recriar um espaço antes de você e tratá-los com a atenção que merecem.
- Aí é que está o problema. A sua existência é que faz tudo ficar complicado. Você não tem que ficar dando asas à imaginação nem sequer esperanças ao coração. Quando eu apareço em algum assunto é sua obrigação respeitar-me ad infinitum. Calar-se, engolir-se, morrer se preciso for. Mas que não fique aí me atormentando como se eu fosse um irresponsável. E outra: não estou mais a fim de comer letras. Não quero outra indigestão!
- Pois então, encerremos o assunto. Não aceito ordens de um ponto tão prepotente. Continuo na marginalidade, mas me nego a aceitar que você tenha sempre razão. E por não aceitar, vou logo avisando: neste assunto estou pronto a interferir. Não vou abrir mão do amor. Não pelo objeto dele, mas por ele e pela magia que ele coloca na vida. E em amor não se aceita ponto final.
Batendo a porta o et cetera deixou de boca aberta o ponto final.
Assim começa meu dia. Sabendo que a luta está explícita. E lá vou eu, torcendo para que flores cubram de pétalas o meu caminho. E levando comigo a interrogação: existirá vencido ou vencedor quando o assunto é amor?