Sebastião Heber
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A Bíblia sempre surpreende a crentes e não crentes, pois sua mensagem é universal. Von Goethe, tocado por esse sentimento, diz:”A grande reverência de muitos povos da terra outorgada à Bíblia, deve-se ao seu valor interno. Ela não é, por assim dizer, um livro, mas o livro dos povos, porque coloca o destino de um único povo, como símbolo dos demais”.Acompanhando a mesma linha de pensamento, Heine também manifesta seu espanto e admiração:”Que livro(...) todo o drama da humanidade, tudo está nesse livro(...).É o livro dos livros”. O mistério da Bíblia é que ela fala da trama humana – por isso há passagens tão obscuras, mesmo no Novo Testamento – mas é lá que a presença divina aparece, parecendo até que Ele quer fazer desse caminho o seu caminho.
Mas o que é a Bíblia? Basta um simples olhar lançado sobre esse livro para ver que ele é uma coleção de livros, é uma “biblioteca”.Quando as introduções desses livros são consultadas, a primeira impressão se confirma: distribuindo-se por mais de dez séculos: os livros provêm de dezenas de autores diferentes. Uns estão escritos em hebraico (com algumas passagens em aramaico), outros em grego; apresentam gêneros literários tão diversos quanto a narrativa histórica.
Todos esses livros provêm de homens e mulheres com uma convicção comum: Deus os destinou a formar um povo que toma lugar na história, com legislação própria e normas de vida pessoal e coletiva. Foram todos eles testemunhas daquilo que Deus fez por eles. Relatam os apelos de Deus e as reações dos homens: indagações,queixas, louvor,ações de graças.
Este povo posto a caminho por Deus foi, primeiramente, Israel, envolvido nos movimentos que agitaram o Oriente Próximo até os inícios da nossa era. No entanto, sua religião os tornava um povo à parte. Israel conhecia um único Deus, invisível e transcendente: o Senhor Javé. Exprimia a relação que o unia ao seu Deus com um termo jurídico: Aliança.
O antigo povo judaico, cuja dispersão se acelerou com a destruição de seu centro religioso, Jerusalém, em 70 d.C., prolonga-se na comunidade judaica, cuja história movimentada e freqüentemente trágica, se desenvolve na maior parte do tempo em terra de exílio. Independente das múltiplas tendências do povo judaico, todas têm por fundamento a Escritura e notadamente a Lei, venerada como a própria Palavra de Senhor..
O século I da era cristão, ao mesmo tempo que vê o desaparecimento da nação judaica, assiste ao nascimento da comunidade cristã, que se afastou progressivamente do judaísmo, apesar dos seus teólogos terem afirmado que a “Igreja é filha da Sinagoga”. Para os cristãos, a história do Povo de Deus, tinha encontrado cumprimento em Jesus de Nazaré; foi por Ele que Deus reuniu as pessoas de todas as origens para formar um povo regido por Nova Aliança, um Novo Testamento.
Os discípulos de Jesus e seus sucessores imediatos que redigiram o Novo Testamento viam Nele como aquele que concretizaria a esperança de Israel e responderia à expectativa universal tal qual expressa no seio desse próprio povo. Com toda naturalidade, utilizaram a linguagem dos livros santos de Israel com toda a sua densidade histórica e experiência religiosa acumulada no decorrer dos séculos. Conseqüentemente, a comunidade cristã reconheceu no Antigo testamento a Palavra de Deus. As Escrituras judaicas vieram a ser, então, a primeira Bíblia dos cristãos. Mas iluminado pela fé em Jesus Cristo, o Antigo Testamento tomou um sentido novo para eles, tornou-se como que um novo livro. São Jerônimo, no século V dizia que a chave de leitura do AT é Jesus Cristo, pois ela não fala de outra coisa a não ser profetizar Aquele que viria como Messias prometido. Assim, judeus e cristão se vinculam à Bíblia, mas não a lêem com os mesmos olhos.
O leitor constata que a Bíblia não constitui simplesmente um antigo tesouro literário ou uma mina de documentação sobre a história das idéias morais e religiosas de um povo. A Bíblia não é somente um livro no qual se fala de Deus; ela se apresenta como um livro no qual Deus fala ao homem, como atestam os autores bíblicos.
“Não se trata de uma palavra sem importância para vós, é vossa vida”, diz o livro do Deuteronômio 32,47. Também diz o evangelho de João 20,30-31 :”Estes sinais foram escritos neste livro para que creiais que Jesus é o filho de Deus, e para que crendo, tenhais a vida em seu nome”.
Nenhum livro poderá desconhecer essa função do texto bíblico, essa interpretação constante, essa vontade de transmitir uma mensagem vital e de atrair a adesão do leitor. O leitor é livre para resistir e pode apreciar a Bíblia apenas como um literato ou apreciador da história antiga. Mas se lê aceitar entrar em diálogo com os autores que dão testemunho da própria fé e suscitam a necessidade de uma decisão, a questão fundamental,o sentido da vida, não deixará de ser enfrentada por ele. Mas a Bíblia e a fé,embora estejam profundamente enraizadas numa história particular e bastante longa, ultrapassam a História. Os autores bíblicos querem ser os porta-vozes de uma Palavra que se dirige a toda pessoa, em todo tempo e lugar. Através dos séculos, as comunidades cristãs de todas as línguas e de todas as culturas encontraram e encontram alimento neste livro, cuja mensagem meditam e atualizam.
Sebastião Heber. Professor Adjunto de Antropologia da UNEB, da Faculdade 2 de Julho e da Cairu. Membro do IGHB ,do Instituto Genealógico e da Academia Mater Salvatoris.