Marcelo Barros(*)
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(irmarcelobarros@uol.com.br)
Para os católicos, setembro é o mês da Bíblia e neste próximo domingo, as paróquias celebram o dia da Bíblia. (Os evangélicos têm o seu dia da Bíblia em dezembro). Em toda a América Latina, tanto nos ambientes católicos como evangélicos, há mais de trinta anos, milhares de pessoas se entusiasmam por novos cursos e encontros bíblicos. O objetivo desses estudos não é o conhecimento intelectual. É a busca de uma palavra viva de Deus. A Bíblia é como uma partitura musical. Contém a transcrição de uma melodia que, cada vez, pode ser interpretada de forma diferente e original. Na leitura da Bíblia, podemos ter sempre um novo encontro com Deus.
A divindade se revela também nos livros sagrados e nas tradições espirituais de outras religiões. Cada dia, um número maior de cristãos procura não só ler a Bíblia, mas também conhecer o Corão, livro sagrado dos islamitas, as escrituras budistas e outras. Entretanto, fazem isso, sempre motivados pela própria leitura da Bíblia que nos ensina que Deus se revela a nós através do outro e do diferente. A tradição judaica gosta de contar a história do rabino Baruch. Este senhor tinha um netinho de três anos. Chamava-se Yeel. Um dia, após o almoço, o rabino descansava na varanda da casa e o netinho brincava de esconder com um primo. Ele se escondeu e ficou lá muito tempo, esperando que o primo viesse encontrá-lo em seu esconderijo. Depois de certo tempo, o menino percebeu que estava escondido inutilmente. Saiu do seu esconderijo e, chorando, foi queixar-se ao avô. O rabino o consolou dizendo:
- Todos os dias, fazemos a mesma coisa com Deus. Ele se esconde para que nós o procuremos. Nós nos desinteressamos e o deixamos escondido. Conforme esta tradição, Deus se esconde e, ao mesmo tempo, se revela para que não desistamos de procurá-lo.
A situação atual do mundo nos desafia: temos de descobrir na Bíblia e na vida o que Deus tem a dizer de atual e novo que possa ajudar a humanidade a sair da crise imensa pela qual passamos e, assim, se possa organizar, como dizem os fóruns sociais, “um novo mundo possível”.
A Bíblia continua sendo o livro mais divulgado e vendido no mundo. Mas, é terrível constatar que a sociedade dita cristã organizou o mundo de forma injusta. É responsável por muitas violências e destruiu a natureza. A própria Bíblia foi lida para legitimar guerras sagradas e a violência. Para isso, muitas vezes, os crentes têm interpretado ao pé da letra as Escrituras. É o que se chama “Leitura fundamentalista da Bíblia”. Se para compreender uma carta que, há 30 anos, alguém escreveu a outro, é importante saber quem escreveu, a quem a carta foi escrita e em que contexto, isso ainda é mais exigente ao se tratar de textos antigos, vindos de outra cultura. Alguns pensam que, no caso dos textos sagrados, isso não seria importante porque a Bíblia é palavra de Deus e não de homens. Mas, a verdade é que Deus quis se revelar a pessoas humanas e de forma humana. No Novo Testamento, a Carta aos Hebreus começa dizendo: “Antigamente, de vários modos, Deus falou a nossos antepassados, sempre através de profetas (pessoas humanas). Nos últimos tempos, nos falou através do homem Jesus de Nazaré, seu Filho” (Hb 1, 1). Se Deus se serve de termos humanos, estes textos têm contexto histórico. Devem ser interpretados a partir da cultura em que foram escritos. Nas últimas décadas, homens e mulheres, cristãos de várias Igrejas, têm estudado os textos bíblicos, procurando compreendê-los no seu contexto histórico. Em suas Leituras Talmúdicas, Emanuel Levinas, filósofo judeu, expõe a súplica de cada versículo bíblico que grita: “Interpreta-me!”. Sozinho, cada versículo bíblico é incapaz de fazer sentido. Além disso, procuramos ligar os dados da ciência exegética com o jeito de ler do nosso povo e o projeto vindo de Deus e que consiste em garantir uma vida digna para todos os seres humanos e em comunhão com a natureza. O cuidado com todos os seres vivos e especialmente com os irmãos e irmãs que nos cercam nos ajuda a descobrir em cada versículo bíblico um novo apelo de Deus para nossas vidas. Como ensina Santo Agostinho: “Ao escutar ou ler a palavra da Escritura, se você não se deixar engravidar por esta Palavra, não chegou verdadeiramente a lê-la ou escutá-la em seu coração”.
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor, autor de 38 livros, entre os quais, o mais recente é "O sabor da festa que renasce" (Por uma teologia afro-latíndia da Libertação, Ed. Paulinas, 2009.