Vladimir Souza Carvalho *
Em tempos de antanho era assim que se iniciava uma carta: ao pegar nesta pena tenho a finalidade de lhe dar minhas notícias e ao mesmo tempo obter as suas. Como vai você? Aqui todos bem, etc. e etc. Eu decorei o introdutório de tanto ouvir. Parecia que só se sabia escrever daquela maneira e assim era que, na cega obediência a alguma estranha lei natural, se fazia.
Hoje não sei como se inicia uma carta, nem se ainda se escreve carta, dada a presença do telefone e, depois, da internet. Sei que, como um tumor maligno (e lá venho eu com meus conhecimentos de medicina apreendidos alhures), a fórmula oficial das cartas, devidamente combatida por fortes radiações, apareceu, com outra roupagem, nos prefácios. Porque é desta forma que, no corpo, o tumor se comporta: o combate lhe faz desaparecer aqui e, depois, maliciosamente, como quem não quer nada, desponta em outro lugar. Da carta para o prefácio foi uma consequência dos novos tempos. Ou seja, sai de um lugar, aparece em outro.
Alguém, para me contradizer, pode perguntar qual a similitude entre a introdução de uma carta, em tempos já idos e vividos, com o prefácio que se lança, nos dias atuais, em livros, sobretudo na área jurídica, porque carta é carta e prefácio é prefácio, sendo diferentes até na soma das letras, no significado dos termos e no som. Boa pergunta, observo eu, já com a resposta na ponta da língua: coteje o prefácio. Verifique como o prefácio é iniciado e verá na frase introdutória a ressurreição da fórmula utilizada pelos antigos na redação das cartas.
Peço licença para fazer a demonstração. Em mãos uma tese jurídica, de mestrado ou de doutorado. Não sei bem como funciona, mas o autor tem um orientador ou coisa que o valha, encarregado de apontar caminhos e corrigir equívocos. Deve ser mais ou menos assim. Pois bem. A tese pronta, tudo seguindo os padrões eminentemente acadêmicos, o autor convida o professor-orientador para elaborar o prefácio. No momentoem que o professor começa a escrever, o espírito perdido de alguém, já falecido há dezenas e dezenas de anos, toma conta da mente do mestre, ditando-lhe uma frase que, analisada com frieza, revela idêntica aquela que os redatores de cartas lhe davam início.
Isto é (estou levantando a pedra para quebrar o dicuri): no prefácio, invariavelmente, a frase inicial é sempre esta, em diversas modalidades: 1) convidado para elaborar o prefácio; 2) honrado com o convite para escrever o prefácio, etc. e etc. É a mesma coisa. Ou seja, é o mesmo pleonasmo que, combatido e morto com a radiação (caso do tumor maligno), surge em outro lugar, com novo formato. É a ressurreição autêntica da fórmula das cartas. Ou, ainda, a reencarnação da desusada maneira de se escrever uma carta.
É certo que, de minha parte, que nunca prefaciei nenhum livro jurídico, paira uma cisma dada com este inicio, vendo nele, nada mais, nada menos, que uma maneira da antiga prática, relativa às cartas, se fazer presente, na predominância do pleonasmo,do dizer o desnecessário. Na caneta de uma pessoa iletrada, mas detentora de letra bonita, a fórmula em foco se justificava, pela completa impossibilidade de tentar voar sem dispor de asa. Mas, cuidando-se, como é o caso, de professores universitários, orientadores, com bagagem superior, dominando (acredito) a matéria com profundidade, repetir e proclamar o óbvio é fato que, particularmente, me bate nos coretos.
No entanto, tenho cansado de ler prefácios, em obras tais, assim iniciado, com realce ao convite feito e aceito, como se a explicação se fizesse fundamental, visto que, quem prefacia é porque convidado foi, devendo, evidentemente, guardar um traço de liame com o autor do livro. Depois, escrever o prefácio já denota a formulação do convite, a aceitação e a consequente materialização, sem que se faça, em circunstância alguma, necessário apregoar que está ali, escrevendo o prefácio, porque o autor da pesquisa o convidou. E se não fosse o autor, quem poderia fazer o convite? O vizinho do autor? Ou a rapariga do soldado de polícia?
A pergunta, por ora, fica sem resposta, para não enfrentar um pleonasmo com outro.
* vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Diário de Pernambuco