Marcelo Barros(*)
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(irmarcelobarros@uol.com.br)
O Ilê Axê Opô Afonjá, um dos mais famosos e venerados templos do Candomblé baianos, completou cem anos de existência. Nas comemorações, alguém lembrou o título de um dos livros de sua Yalorixá, Mãe Stella de Oxossi: “Meu tempo é agora”. Nada de saudosismos de quem se se lamenta: “no meu tempo, não era assim...” para indicar um passado que não volta mais. Nem, ao contrário, projetar-se em um amanhã que ainda não existe. Viver o presente é assumir a realidade pessoal nossa e do mundo de hoje, não como fardo ou situação da qual não podemos escapar, mas como algo que, apesar de suas dores e dificuldades, precisamos vivê-lo para o transformarmos. Situar-se plenamente no presente é um ensinamento da maioria das tradições espirituais. Buda ensinava seus discípulos a se libertar das preocupações passadas e futuras e simplesmente centrar-se no presente. O evangelho conta que, no sermão da montanha, Jesus disse aos discípulos: “A cada dia basta o seu cuidado próprio” (Mt 6, 34). Ao caminhar para Jerusalém, onde sabia que iria sofrer, disse aos discípulos: “Se alguém quer me seguir, a cada dia, tome a sua cruz e me siga” (Lc 9, 23). Tomar a cruz de cada dia é assumir os compromissos e encargos da missão que temos hoje, como discípulos/as do mestre, no testemunho do projeto divino para o mundo.
Esta abertura plena do ser ao presente ajuda a pessoa a se atualizar continuamente e a se abrir para uma transformação sempre possível. Viver profundamente o presente nos capacita melhor, intelectual e emocionalmente, para conviver conosco mesmo e com os outros. Em certas línguas modernas, o termo perplexidade expressa algo negativo. As pessoas se dizem perplexas com algo que não compreenderam ou não aceitam. Entretanto, de fato, etimologicamente, este termo vem do verbo latino plectere que signifca tecer, tramar e do advérbio per que indica completude, perfeição. Assim, o sentido mais profundo de uma pessoa perplexa é de alguém que se abre à estranheza do presente. A perplexidade é a capacidade de se deixar tecer interiormente na trama de uma realidade em constante mutação. Esta disponibilidade de abrir-se ao desconhecido que, cada dia, vem ao nosso encontro, faz de nós, pessoas cosmopolitas (cidadãos do mundo e do universo.
As religiões devem servir para educar as pessoas a viver o presente. Muitas vezes, parece que Igrejas e religiões nos prendem mais a um mundo de tradições e costumes antigos, sem nos libertar para viver o presente. Entretanto, não se pode confundir Tradição com tradicionalismo. Manter a Tradição é uma forma de atualizar o que Carlos Mesters chama de “memória perigosa” para viver o hoje divino na realidade humana. Ao contrário, o tradicionalismo nos prenderia ao passado, por repetir fórmulas, perpetuar costumes e roupagens de antigamente, por mera nostalgia e falta de coragem de viver o hoje de Deus. Uma religião assim seria não o sacramento, mas o túmulo de uma verdadeira espiritualidade.
Nos evangelhos, Jesus interpela os seus contemporâneos: “À tarde, vocês olham o céu e sabem que vai chover, porque as nuvens estão carregadas. Quando sentem o vento vir do sul, sabem que haverá tempestade. Por que, então, não são capazes de discernir os sinais deste tempo presente?” (Mt 16, 2 – 3). Hoje ainda, ele continua a pedir a cristãos/ãs e a todas as pessoas que buscam a Deus que se abram ao tempo presente e descubram na realidade atual sinais da graça e da salvação. Para isso, é preciso reencantar o nosso olhar e nos tornar mais confiantes e esperançosos na permanente vitória do amor sobre a indiferença e o vazio.
As tradições ancestrais indígenas e afro-descendentes nos fazem descobrir, em nosso cotidiano, o milagre da presença divina em uma folha da mata, no sussurrar do vento e no barulho da água, ao cair em meio às pedras. As religiões orientais nos fazem ser presentes ao mundo através da respiração profunda e da consciência do Buda em nós, assim como do aprendizado da compaixão. O Judaísmo nos chama a descobrir uma palavra divina em cada apelo de justiça. Baseado em uma antiga oração judaica, Jesus de Nazaré nos ensina a pedir ao Pai: “Venha o teu reino e dá-nos, hoje, o pão de cada dia” (Mt 6, 9 ss).
Em seu disco clássico Refavela, Gilberto Gil incluiu uma música que se chama Nova Era, na qual ele canta: “Falam tanto de uma nova era. Quase esquecem do eterno é. Se você puder me ouvir agora, já significa que dá pé. Novo tempo sempre se inaugura a cada instante que você viver. O que foi já era. E não há era, por mais nova que possa trazer de volta o tempo que você perdeu” .
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.