Marcelo Barros(*)
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(irmarcelobarros@uol.com.br)
Uma amiga me pede que eu esclareça a minha fé e proponha elementos ou passos de uma espiritualidade ecumênica para o dia a dia. Partilho com vocês que me honram com a leitura de meus textos a resposta que lhe dei:
1. O que eu creio e o que não creio
Creio não em algo, mas em Alguém. Alguém que é Um e, ao mesmo tempo, se manifesta de formas múltiplas. A maioria das religiões o chama de Deus, que etimologicamente quer dizer Luz. Deus é amor e torna o ser humano capaz de amar e agir por amor. Acolho a vida como a palavra mais maravilhosa de Deus e me comprometo a cuidar sempre com mais amor da vida das outras pessoas, do planeta e da minha própria vida.
Não creio em um Deus, Senhor patriarcal, todo poderoso que premia os bons e castiga os maus. Não creio em um Deus preso a um sistema doutrinário ou dentro da gaiola de uma instituição religiosa. Jesus me fez descobri-lo como Abba (Paizinho) que vai ao encontro do pecador e o perdoa. O bom pastor abre as portas de qualquer aprisco que nos segure e nos chama para fora, onde haja comida e liberdade (Jo 10). Sempre que celebro o seu louvor, me pergunto a quem estou adorando: se a Deus que não me pediu culto e sim justiça ou se celebro a mim mesmo. Quando oro, me questiono se Deus não é o primeiro interessado em tudo o que peço. Portanto, em minha oração, não posso pretender lembrá-lo de fazer as coisas que seria seu dever e ele teria esquecido. Jesus recomendou: “Não use de muitas palavras. O Pai de amor maternal vê o seu coração”. Orar é apenas sintonizar com Deus e nos colocar silenciosamente à sua escuta e ao seu dispor.
A espiritualidade é um caminho (há muitos) pelo qual podemos segui-lo no rumo de uma amorização do universo. Aqui, resumo alguns elementos deste itinerário que procuro trilhar:
1 – Seguir a Deus na sua universalidade.
Deus é Amor e, como amor, se dá de mil maneiras. Ele nos fala através de cada religião e caminho espiritual. Jesus valorizou a fé do samaritano, da mulher sírio-fenícia e do oficial romano. Neste mundo, marcado pela diversidade cultural e religiosa, acolher o diferente e com ele dialogar é colaborar para a paz.
2 – Desenvolver uma visão crítica e transformadora do mundo
Conforme o Evangelho, a primeira proposta de Jesus é que vivamos uma profunda e contínua mudança de mente e de vida (em grego, metanoia). Esta conversão é pessoal e social. Este mundo plural é também extremamente injusto. Não creio em verdadeira espiritualidade se não me levar a sentir-me responsável pelos outros e pela realidade do mundo. Faz parte desta espiritualidade a indignação ética diante das injustiças e a solidariedade aos empobrecidos.
Um elemento que provocou a maioria dos males no mundo foi o patriarcalismo. Infelizmente, as próprias religiões absorveram este pecado. As culturas patriarcais tomaram verniz religioso. A espiritualidade ecumênica nos chama a vencer, em nós e no mundo, todo germe de patriarcalismo que discrimina e oprime a mulher, além de alienar o homem. O Evangelho propõe um “discipulado de iguais”, profecia de um mundo mais justo.
3 – Testemunhar o amor que fecunda o universo
Optar por uma espiritualidade ecológica não é divinizar a natureza. Nem, ao contrário, se satisfazer apenas com um “desenvolvimento sustentável” que tenta conciliar o capitalismo essencialmente depredador com sustentabilidade. Somos parte do universo e, como tal, nos relacionamos amorosamente com os outros seres e com a vida na Terra. O Espírito Divino nos chama a segui-lo na missão de interligar o universo. Para isso, preciso sempre rever hábitos consumistas e organizar o meu modo de viver a partir da sobriedade e do cuidado com a natureza e a vida de todos os seres.
4 - Acolher as ciências como caminhos de aprendizagem espiritual
Toda verdadeira ciência é inspirada pelo amor divino. Precisamos superar, de um lado, o dogmatismo de quem acha que sabe tudo e do outro, a acomodação de quem não se sente em busca. É preciso criticar uma ciência que visa meramente o lucro das empresas e não opta pelo cuidado com a vida. E lutar para que a ciência seja acessível a toda a humanidade e não só a uma elite que pode pagar seus serviços. Entretanto, é preciso sempre testemunhar que fé e ciência não somente não são incompatíveis, como se complementam.
5 – E Igreja?
Em todas as tradições, o caminho espiritual se vive como principio de vida pessoal, mas em comunhão com os outros. No caso cristão, a fé nos une em uma fraternidade, inspirada em Jesus Cristo e chamada Igreja (assembléia), comunidade local, em comunhão com as outras comunidades de fé, espalhadas pelo mundo. Uma comunidade em permanente renovação. Lutero dizia: “reformata et semper reformanda”, renovada e em permanente processo de renovação. Na década de 70, Walter Kasper, hoje cardeal no Vaticano, escrevia: “Muitas das dificuldades que as pessoas têm para viver a fé cristã não vêm da própria fé e sim da forma como os cristãos a interpretam e a vivem”. O que mais afasta as pessoas da fé nem são os pecados ou problemas morais dos ministros. Afasta, sim, o enrijecimento de estruturas eclesiais que, no lugar de ajudar as pessoas a viver a boa noticia (Evangelho) da vida, acabam, em nome de Deus, ameaçando a liberdade pessoal e dificultando que as pessoas vivam em paz. Infelizmente, este mesmo tipo de fenômeno ocorre, de um modo ou de outro, em outras religiões.
Graças a Deus, aumenta cada dia o número das pessoas que se dispõem a retomar a solidariedade amorosa como critério de espiritualidade, em qualquer que seja a tradição religiosa. Nas Igrejas cristãs, tem sido para muita gente a expressão que o seguimento de Jesus assume concretamente. Ele se insere no mundo e nos chama a viver sempre para os outros e não para nós mesmos. Tertuliano, um cristão do século II, dizia: “Para quem é cristão, nada do que é humano pode ser estranho!”.
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.