Vladimir Souza Carvalho *
Eu poderia ser como um imperador chinês – pelo menos, o último era assim -, tendo uma como titular, e outra, na condição de reserva. Mas, vou além. A titular é para as solenidades oficiais, nas aparições públicas. A reserva para os demais atos, acobertados pela privacidade de quatro paredes. Só naquele momento exato em que o passo carimba a área pública é que tomo a cautela de me fazer acompanhar da titular. As aparências a guiar tudo.
Neste aspecto, estou mais para o dono do harém, cercado de todas elas nas cabanas instaladas no deserto, ou por todos os apartamentos que compõe o castelo das mil e uma noites. Fidelidade, que deveria ter, é capítulo de livro que não leio, nem chego perto, para não sofrer a tentação de me ver recriminado, uma lição de moral proferida por algum professor rabugento, a me apontar as profundas do inferno como caminho obrigatório para quem, em toda a vida, não consegue se manter na linha monogâmica.
Devo um esclarecimento antes que minha confissão desembarque em porto estranho. Não estou a me referir ao elemento feminino, ou mais, precisa e específicamente, a mulher. Em absoluto. Poderia invocar minha idade como escudo ou outras virtudes desconhecidas do grande público. Mas, me contento em proclamar: a minha referência é, única e exclusiva, ao tipo de letra que os computadores, que uso, e são quatro, me coloca à disposição. Não se deve nunca apressar julgamentos precipitados, para, ao morrer, não chegar ao outro mundo com a cara preta de pecados.
Assim, me explico, agora que já se sabe que faço a menção ao tipo de letra. Tenho uma, oficial, sagrada, com que revisto minhas decisões no exercício da judicatura [agora] de segunda instância. Mas, na elaboração dos arrazoados, me utilizo de outros tipos de letra. Abro a parte apropriada e fico a escolher um tipo que me agrade, no qual, geralmente, preparo o texto. Uma vez concluído, passo para o tipo oficial. Não me utilizo de um tipo só na preparação. Invoco vários, de decisão em decisão, a depender do gosto do momento. Só depois é que, concluído, enfim, passo para o tipo oficial, adotado no Tribunal Regional Federal da 5a. Região. Idêntico exercício me utilizo quando estou a escrever os alfarrábios que canso os amigos com a obrigação de lê-los.
Pois bem. No uso de alguns tipos, observo que mergulho no passado, na busca de tipos de letras que vi em velhos livros, quando, por mais de um ano, fui o tomador de conta das chaves da Biblioteca Pública Dom José Thomaz, em Itabaiana. Faz bem ao ego de minha saudade, mexendo com as reminiscências guardadas no consciente da memória, rever tipos de letras que os muitos daqueles livros, lidos, guardados e manuseados, apresentavam. É como se, outra vez, estivesse na cadeira do bibliotecário, como um sultão cercado de livros por todos os lados, senhor da cultura que cada página exalava.
O melhor é estender, no computador, meu texto com aqueles tipos que vi na infância, a me transformar em linotipista de uma grande e confusa máquina que ainda alcancei, em oficinas de jornais em Aracaju, como as de A Cruzada e da Gazeta de Sergipe. Ligo o presente, na confecção de textos, ao passado, na utilização de velhos tipos de letra que a eletrônica transporta para os programas de computador, variedade que a gente, na máquina de datilografia manual, não sonhava, porta que começou a ser aberta com as máquinas elétricas que se municiavam de uma “margarida”.
É essa variedade de tipos que me permite estar sempre a me utilizar de um e de outro, até que a redação se completa e se conclui, ocasião em que, enfim, o tipo de letra oficial toma assento e reveste meu texto com o abraço de seu formato. Se o passado esteve presente na sua elaboração, o presente se firma no tipo novo. Do presente e do passado vive o homem, nas suas lembranças.
Como J. G. de Araújo Jorge, poeta de Amo, que muito li, em tempos imemoriais, em um poema, via algo de feminino na gata de sua casa, que se jogava sob seus pés e passava o corpo em suas pernas, vejo, também, algo de feminino no tipo das letras, morrendo de pena de algumas que nunca são escolhidas, ficando, eternamente, sem uso. E aí me lembro da moça feia que estava na janela, na letra de A Banda, de Chico Buarque, moça feia que nenhum rapaz escolheu para ser sua noiva. Assim também ocorre com alguns tipos de letras.
* vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Correio de Sergipe