quarta-feira, 21 de julho de 2010


  A Intemporalidade
           da Obra
                 de
        José Saramago









J. A. Horta da Silva
horta.silva@sapo.pt


Portugal despediu-se do seu Nobel da Literatura vestindo luto nacional. Todavia, nem todo a gente sentiu pesar pelo desaparecimento de um dos maiores vultos da literatura mundial e, pior do que isso, políticos houve que se deram a manifestações premeditadas de indiferença esquecendo-se de manifestar, pelo menos, um esboço de gratidão pelo legado que José Saramago deixou ao seu país e ao mundo. Felizmente, de quando em vez, o futuro dá-se a escrever direito por linhas tortas. Aliás, a História tem punhados destes exemplos. É normal que um homem controverso instigue opiniões divergentes, mas um país democrático e secular, que vive de recordações históricas, não pode dar-se ao destempero de ignorar ou fingir que ignora a figura e a obra de um Nobel da Literatura. José Saramago foi e será, para todo o sempre, um exemplo daqueles que vencem à custa de uma enorme força de vontade que, associada à intrínseca genialidade que a Natureza o dotou, o catapultou para a ribalta internacional, muito embora tivesse sido mal tratado por uma larga faixa do espectro político-religioso português, razão bastante para o tornar ainda maior.

Até à polémica discussão havida na Assembleia da República acerca da obra “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, confesso que nunca tinha prestado a devida atenção às obras daquele que, anos mais tarde, seria mundialmente reconhecido. Por essa ocasião, Saramago já tinha começado a subir a escada da sua afirmação como homem de letras, mas o espectro da intemporalidade de uma carreira de escritor ainda estava longe de rascunhar o horizonte da literatura mundial. A verborreia passada na comunicação social, acerca do comportamento de um largo espectro dos deputados da Assembleia da República e do governo de então, prenderam a atenção de milhares de portugueses e, por esta singularidade negativa, Saramago começou a ser bem mais conhecido e lido do que até então.

Nos tempos passados, muita gente pagou de forma penosa e cruel, inclusivamente com a vida, os avanços da ciência e a inspiração artística, fosse esta expressa sob a forma de artes plásticas ou sob a forma literária. Paolo Veronese, discípulo de Tiziano afrontou a Inquisição quando questionado a propósito da sua “A Última Ceia”, preferindo mudar-lhe o título a mudar-lhe o conteúdo iconográfico, que se tornou célebre sob a designação “Festa na Casa de Levi” e Goya não deixou de se envolver numa guerra com a Espanha conservadora e a Inquisição espanhola, a propósito de “La Maja Desnuda”, de nada lhe valendo tentar esconder o nu púbico da suposta Pilar Teresa Cayetana, duquesa de Alba, por detrás de “La Maja Vestida”, guerra que lhe deu espaço para criar uma série de obras altamente satíricas e aberrantes contra a sociedade e a Igreja, obras que tangem a negrura da alma que desencadeia a ousadia. Em Portugal, pelo que nos conta o “Índice Inquisitorial de Livros Proibidos”, que teve várias actualizações e colocou o país no topo da pirâmide da censura católica, a repressão incidiu muito mais sobre os escritos e práticas de culto do que sobre pintura e escultura. Damião de Goes1 é um dos grandes exemplos da perseguição da Igreja Católica, não obstante ter merecido protecção do Inquisidor-Geral, Cardeal D. Henrique, que lhe deitou a mão até que D. Sebastião, feito rei, começou a tirar o poder ao tio-avô que acabou por deixar cair Goes que foi julgado, preso e assassinado em ambiente rodeado de intrigas. Muito mais recentemente, com o despontar do liberalismo, o próprio Almeida Garrett foi julgado e acusado de ser materialista, ateu e de cometer o delito de abuso de liberdade de imprensa por publicar o poema “O Retrato de Vénus”.

Os bárbaros erros cometidos pela Inquisição já foram reconhecidos pela Igreja Católica e o Papa J. Paulo II chegou mesmo a pedir desculpas por essa mancha hedionda da História do Catolicismo, facto que mostrou intenções generosas do ex-sumo pontífice relativamente ao futuro da política do Vaticano. Os evangelhos – assinados ou apócrifos, canónicos ou não canónicos – são relatos escritos por homens e o Velho e Novo Testamentos não deixam de ser obras religiosas imbuídas de um cariz literário sujeito ao estado do conhecimento e aos processos de transmissão de dados inerentes aos tempos em que foram escritos. Não há nada de ofensivo nos livros “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e em “Caim”, mesmo que estes livros tenham sido escritos por alguém que sempre se considerou ateu, direito inalienável da Constituição Portuguesa. Contudo, há gente que gosta de ser mais papista do que o próprio Papa. O procedimento persecutório de elementos da Igreja Católica, de alguns políticos e de franjas de sociedades conservadoras tem ajudado, ao longo dos tempos, a imortalizar obras de autores laicos e agnósticos e assim aconteceu com Saramago.

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1 “Fides” de Damião de Goes; obra publicada em Lovaina em 1540, impedida de circular em Portugal, por decisão da Inquisição. Trata da religião dos etíopes, um cristianismo confuso, que contém reminiscências de ritos judaicos e muçulmanos e que foi trazido ao conhecimento da Corte portuguesa pelo bispo abexim Zagà Za ab.