segunda-feira, 28 de junho de 2010

NO TEMPO



Djanira Silva
djaniras@globo.com
http://blogdjanirasilva.blogspot.com/


    A vida se dissolve nas horas, nas sombras, nas passadas, nos sonhos, no nada. Nem ao menos podemos preservar os sonhos. No espaço deixado pelo que se foi, lembranças enterradas compulsoriamente.
     Sobre o móvel, fotografias de um tempo adormecido. No piano compassos de valsas à espera do tom. O aniversário, a formatura, o casamento.
    Das prisões dos porta-retratos as lembranças não podem fugir. A chuva acaricia o jardim. A roseira agradece. Fecho os olhos, desligo o pensamento. Volto para a cama. Medos me assaltam.
    O trovão assusta a menina: - Tem medo, não, filha, é Deus arrumando a casa. O relâmpago risca o fósforo, acende o céu. Sinhá Maria afagava-lhe as ilusões. Ainda não era tempo de verdades.
    Rituais de chegadas e partidas. Mãos abandonadas, olhos fechados, ouvidos de silêncio. Sou eu? Nem sei. Uma estranha sabendo de mim o que não sei, dando voltas ao redor do nada.
    Os sinos tocam.
    Epifania, Eucaristia, Te Deum, anunciam e desanunciam a vida numa melancolia de noite de Natal ou na alegria do primeiro dia de um mundo inteiro a começar de novo – ameaça ritual de felicidade.
    Metade da vida se vai, nos perdões vadios, nos arrependimentos vazios.
    Fecha-se um tempo. A terra arquiva os escolhidos nos rituais da bênçãos e dos adeuses.
    O corpo no chão. Nos pés, asas de Ícaro, sonhos derretidos, lágrimas de vidro.
    O corpo no chão. Encantos de um maio branco, flores, altares, não e sim acasalados.
    O corpo no chão. No olhar a certeza de uma alma esmagada.
    Alma fantasiada. Monges, colombinas, palhaços, tudo sonho, tudo sonho, almas alegóricas vestem histórias de faz de contas. Era uma vez...
    O corpo no chão, sinalizado: pare olhe escute.
    A vida apita na curva.
    Quem inventou a obediência inventou o arrependimento. É preciso obedecer e saber que isto é isto é se já não me bastasse a respiração tenho que acompanhar o ritmo. Morro quando não posso parar e só me resta seguir as pegadas alheias nos caminhos tortos se paradas;
    Visto-e com os farrapos dos meus enganos. Nasci assim, nem verde nem madura. O que me prendia ao tronco da matéria foi cortado e enterrado num vaso de rosas, ali, um pedaço de mim descansa em paz. Com os restos de um livre arbítrio risonho e falso, construí inutilidades.
    O corpo no chão.
    Olhe, pense, ria. Olhei sem pensar e ri na hora errada.
    Ao amanhecer arrumo tesouros do para sempre: um punhado de terra uma pá de cal. Rasgo retratos antes que a trança os trace. Guardo o da família unida e imortal onde as crianças não crescem nem os velhos morrem. Queimo papéis, cartas, recados, promessas. Entrego meus livros para adoção. Alguns levam minhas mágoas nas entrelinhas.


Obs: Texto retirado do livro da autora – A Morte Cega