Djanira Silva
djaniras@globo.com
http://blogdjanirasilva.blogspot.com/
Esperança não sabia que a casa havia caído. Carecia de muitas madrugadas para saber. A casa caíra como da vida caíra o sonho, dos ossos a carne, da alma a vida. A pele seca, o reboco esqueleto exposto. A janela fechada, a porta fechada, a casa silenciosa.
Ali, não era seu mundo. Ele se perdera em outros movimentos: nas ondulações da goiabeira, na mutação dos pássaros, nas brincadeiras de roda, no passar do vento, no vôo da borboleta num velho quintal.
Tudo ali dissera adeus. O tempo levara as almas os segredos nas madrugadas e nos anoiteceres.
A roupa, viva, estendida, nos varais, contava uma história. O vestido branco que não a tornara santa, o vestido negro que não fora seu luto, o vestido vermelho que vestira para amar o seu primeiro amor. Ai, como quis ser boa. A enganara o branco do vestido.
As roupas jogadas no chão, não a fizeram santa na noite do sacramento.
Nua percebeu o mundo em transição, na pele macerada, nas velhas ruínas das portas fechadas, da casa em segredo.
O invisível, a dor, a sombra, o passado preservado de uma realidade em ruínas, Esperança chorou.
Poeira flutuante, dores que se dissolvem nas diferenças. “Este não é o meu quintal, este não me entrega caminhos que atravessei quando fechei portas e janelas trancando lá o silêncio da virtudes, a culpa dos pecados, para os decompor nos olhos de quem não me conheceu. Quando os olhos que me viram criança se forem, mergulharei no meu desconhecido.” “Este não é o meu quintal, cercas limitam o mundo no olhar, nos gestos, nas mãos pesadas, nas virtudes. O cárcere me violentou. Tornou mentira o que aprendi comigo. Obedecer foi a coisa mais perigosa que me ensinaram, me anulou ensinando-me a pensar com o pensamento alheio. Tudo quanto o homem tocou, apodreceu enferrujou. A palavra imposta não sobreviveu. A ninguém falei da minha dor”.
Na tarde, na noite, em todas as madrugadas, Esperança sofreu. O mundo encheu-se com sua espera, amargou a amargura, sofreu o sofrimento de um riso sem alegria que apodreceu e enferrujou. A porta da casa se abriu. “As grades das prisões não são diferentes das portas da minha infância,” pensou Esperança.
Estava livre. Ali não encontrara a saudade. Vira olhos serenos pousados nos canteiros de dálias, de rosas e bogaris. E meio a urtigas e cardos, conseguiam sonhar.
No cheiro da terra molhada das tardes chuvosas, na claridade das manhãs de sol se fez criança era criança ainda, a que se foi e ficou, a que nem se perde, nem se apaga, repetindo-se, sempre, nos rumores, nem se apaga, repetindo-se, sempre, nos rumores e nos arquejos a que tenta dizer adeus a cada hora.
Onde a insensatez é definição e só a metamorfose explica a alma de Esperança despedaçada quando a casa em ruínas surgiu à sua frente.
A alquimia do saber transformou tudo em verdade, ensinando-a a fingir. A dor da natureza confiscou sua alma. Para quê, ela nunca soube. Talvez para transformá-la em flor, em água, em pássaros, folhas verdes. Na infinita permanência do universo nem se escuta nem se reconhece. Nas ruínas de muitas almas, de muitas casas onde espíritos transitam, encontrou as madrugadas e nelas, o que faltava.
Almas antigas andavam nos canteiros nas ruas, acompanhando seus passos, vendo suas quedas, esperando a redenção.
Abraçou a terra. Abraçou tronco, raiz, galhos, frutos maduras, folhas secas. Entre uma madrugada e outra, adormeceu.
Com o anoitecer veio a vigília e então ela aprendeu a reinventa o mundo. “Adormecer me descansa do sonho inútil”. Entre uma madrugada e outra despertou magoada com o desconhecido desde novo mundo. Procurou o verde do quintal, a terra molhada, a pitangueira florindo, o silêncio, da infância distraída. O mundo reinventado traiu o seu sonho. Integrou-se aos conflitos do tronco e da raiz. Ficou à espera da flor e do fruto. Recebeu a última folha caída onde as veias secas desencantavam a vida. Naquela morte o sonho ondulou e caiu ao som da primeira valsa que despertou o sol. As madrugadas adormeceram o quintal de barro, de sonhos, de saudade. Esperança sabia do mistério das folhas caídas no entardecer esmorecente, na faceirice da bonina disfarçada.
A cigarra passou, ela ficou; a borboleta passou ela ficou: o mundo ficou, ela se foi. Ninguém sabe dos desenganos do cajueiro, das folhas mortas caídas, descoradas.
Esperança deu a mão à vida. Ciranda, cirandinha... cirandou pelo mundo. Votou nas voltas do tempo. Meia volta vamos dar... ciranda, cirandinha.... nas mãos do que morreu, do que lutou, do que mentiu. Das mãos que não disseram adeus.
Obs: Texto retirado do livro da autora – O Olho do Girassol