segunda-feira, 24 de maio de 2010



O Culto Mariano, Fátima

e

Bento XVI

      por


     J. A. Horta da Silva


Ex-Director do INETI (Coimbra)
(horta.silva@sapo.pt)


No Domingo, 2 de Maio, fui com a família a Fátima, acontecimento que ocorre, de quando em vez, à revelia de ocasiões repletas de solenidade: pareceu-me um dia calmo em termos de trânsito, razão pelo qual resolvi regressar pela estrada nacional. Eis senão quando, comecei a deparar-me com renques de peregrinos que, não obstante parecerem cansados, mostravam uma jovialidade impressionante, independentemente dos anos de vida que acarretavam consigo. Gente nova, gente madura, gente alegre, gente introspectiva que, aos pares, em pequenos grupos ou em longas fileiras rumavam a um destino, movidos por fortes convicções de crença. A “Santiago de Compostela” vai-se não só por fé, mas também por espiritualidade, por gosto contemplativo da natureza, por história, por arte e até por desporto, mas os peregrinos de Fátima pareciam imbuídos, exclusivamente, por duas ordens de razão: fé e uma certa curiosidade acerca do novo Papa, que os figurinos apontam como sendo uma figura professoral, austera, hermética, racional e conservadora.

O reconhecimento do Culto Mariano pela Igreja Católica é historicamente tardio, muito embora o Concílio de Éfeso (séc. V) tenha declarado Maria como mãe de Deus feito homem. Apesar das decisões deste Concílio e das manifestações deste culto ao correr dos tempos, a figura da Virgem só foi definitivamente santificada, em 1854, pelo papa Pio IX (Dogma da Imaculada Conceição), doutrina que veio dar um aconchego à devoção popular, cujas raízes se encontram no Paleocristianismo (séc. III). Há quem afirme que o Culto Mariano surgiu, muito provavelmente, não só para sombrear o nome de Eva, mas também para divinizar a imagem feminina isenta de pecado. Nos sécs. XI e XII, constroem-se grandes catedrais góticas em honra da Virgem (ex: Chartres, Reims e Notre-Dame de Paris) e desenvolve-se o pequeno Ofício a Nossa Senhora mas, com o passar dos anos, a piedade Mariana excede-se em alguns países, assumindo formas pouco ou nada canónicas. A Inquisição surge impiedosa e o guia “Malleus Maleficarum” (séc. XV) – que considera a mulher um ser altamente sexuado dado à feitiçaria e à bruxaria – instiga a perseguição e semeia a tortura e morte até que o problema da mortalidade infantil exigiu uma mudança de mentalidade e de atitude perante a imagem da mulher. Por estas e outras razões, o Culto Mariano só começou a impor-se, definitivamente, com as aparições de Paris (1830), La Salette (1846) e Lourdes (1854). De qualquer modo, o dogma sobre a ascensão de Maria aos céus (em corpo e alma) só é definido em 1 de Novembro de 1950 pelo papa Pio XII (Meditações Marianas), o que deixa inferir que o Culto Mariano não teve origem apostólica.

As Aparições Marianas montam ao ano 39 (Saragoça; Espanha), tendo como vidente o apóstolo Santiago, e percorrem os tempos até 2001 (Kodungaiyur; Índia), tendo por videntes Rosalind e Alexander. Das cerca de sessenta e nove aparições relatadas, foram reconhecidas pela Igreja Católica cerca de vinte e três, salientando-se: Caravaggio (Itália-1432) N. S. do Caravaggio; Cidade do México (México-1531) N. S. de Guadalupe; Paris (França-1830) N. S. das Graças; La Salette (França-1846) N. S. de La Salette; Lourdes (França-1858) N. S. de Lourdes; Knock (Irlanda-1879) N. S. de Knock; Fátima (Portugal-1917) N. S. de Fátima; Banneux (Bélgica-1933) Virgem dos Pobres; Zeitoun (Egipto, 1968-1971) N. S. de Zeitoun; Akita (Japão-1973) N. S. de Akita; Kiebo (Ruanda-1982-1988) N. S. das Dores e Litmanová (Eslováquia-1990-1995) N. S. da Imaculada Pureza.

A partir do séc. XVIII, independentemente da universalidade das aparições, o Culto Mariano europeu está imbuído de um juízo reactivo a ideologias ateias e anticlericais, nomeadamente iluminismo, liberalismo e marxismo, facto que prenuncia uma tolerância de conveniência por parte da Santa Sé, à revelia de posições de outrora. No entanto, existem Aparições Marianas geograficamente apartadas daqueles contextos político-sociais. O simbolismo imagético que caracteriza o terceiro segredo de Fátima, reconfigura o desígnio anti-comunista.

A postura de Bento XVI acabou por mostrar uma pessoa bem mais dada a multidões do que se imaginava, não obstante poder ser um rigoroso intelectual nas matérias que carecem o pleno exercício da razão. Quanto à timidez, parece que ninguém deu conta dela e duvidamos que seja tímido um homem que já afrontou o mundo muçulmano, durante uma conferência dada na Universidade de Ratisbona, um homem que toma posições frontais quanto às intenções da Turquia aderir à União Europeia e um homem que abre a Igreja Católica à investigação da pedofilia. Fica por saber até onde chegará a sua ortodoxia que, certamente, continuará a entristecer a América Latina, relativamente à Teologia da Libertação, e o Mundo Católico no que se refere à contracepção e ao aborto. A visita de Bento XVI confirmou o destacado lugar de Fátima, como altar do mundo, facto que aprofunda e fortalece as relações entre Portugal e a Santa Sé. A Doutrina Social da Igreja tem campo para trabalhar e é extremamente importante para os tempos de carência e de miséria que se avizinham. É preciso começar a arregaçar as mangas. O actual grande inimigo chama-se “hiper-liberalismo selvagem”.