segunda-feira, 24 de maio de 2010

A ESCOLA DE MARIA DE BRANQUINHA

Vladimir Souza Carvalho (*)


Eu gostaria de reconstruir a escola de Maria de Branquinha, a começar pela primeira, em um salão, na sua residência, depois do banheiro e da lavanderia, na Rua da Vitória Nova. A sua mesa ficava voltada para o poente. Atrás da mesa, a água, que vinha do banheiro e da lavanderia, passava em direção ao quintal. Deste, nenhuma imagem ficou retida. O quadro negro pendurava-se em uma parede do lado direito da mesa.

Por aquela sala, de calça curta, estudei nos anos de 1958, 1959 e talvez 1960. Deste, a memória falha. A gente entrava pela porta da frente, passava por duas salas, ultrapassando, depois, um corredor, talvez sem cobertura, e daí para o salão. Da solenidade de entrega das provas, no ano de 1959, o meu melhor ano na escola de Maria de Branquinha, guardo uma foto, recebendo a prova e um beijo da professora. É a única que tenho dos quatro anos do primário cursado na escola de Maria de Branquinha. Pobre deste tempo em que a foto era uma raridade em minha vida de estudante da escola de Maria de Branquinha.

Eu gostaria de reunir aqueles do meu tempo, que passaram, ano a ano, pelo primário comigo, para matar a saudade e voltar, quem sabe lá, a ser criança outra vez. Não consigo. Nem ao menos me lembro de três ou quatro nomes. Talvez porque todos ficássemos no mesmo salão, alunos de pré-primário e do primário, sentados, obedientes e calados, Maria de Branquinha a comandar todos os passos, dois relógios na mão esquerda, relógios de homem, achava interessante o fato, a ponto de tê-lo guardado na memória. Não sei, ainda hoje, como ela conseguia controlar todo mundo, uma disciplina que a caserna invejaria.

Depois de reconstruir o salão da casa da Rua da Vitória Nova, eu iria reerguer o outro salão, mais amplo, quase a sombra de uma copuda mangueira, na Rua Manoel Garangao, na casa que se inicia na Rua das Flores, onde, tenho certeza, no ano de 1961, estava lá, no quarto ano, ocupando uma carteira imensa, onde ficavam quatro ou cinco alunos. Um pouco antes, o sanitário, construído de cimento, onde o aluno, para se deslocar, tinha de passar pela mesa da professora e pegar a pedra, o cuidado imenso para não urinar nas bordas, senão, chegasse ao seu conhecimento, a palmatória comia no centro.

Ah, eu também tenho saudade da palmatória, as mãos de Maria de Branquinha apertando os dedos da mão do aluno para trás, a fim de palma [da mão] ficar mais lisa, para receber os bolos com mais força, a dor, infalivelmente, sendo maior. Quem ensinou Maria de Branquinha a usar a palmatória? A época, a palmatória era instrumento inseparável - mistura de disciplina e de tortura - de toda escola. Bolos tomei em 1958 e em 1960. Não apanhei no ano de 1959, e, acredito, que também tenha passado ileso em 1961. Nunca chorei. Apertava os dedos para segurar a dor. Quatro bolos de Maria de Branquinha doíam um bocado, as mãos queimando por muito tempo, o aluno de cabeça baixa, a vergonha de olhar para os colegas.

Eu gostaria de ver, novamente, no final da tarde, seu José colocando a bacia no chão, perto da mangueira, para dar banho em Tarcisio, Paulinho, Tonho e Zé, a fila formada, enquanto nós estávamos às voltas com as lições, o salão cheio de alunos, de cinco aos onze e doze anos, atentos a todos os movimentos de Maria de Branquinha, que, de sua mesa, agora voltada para o nascente, dava atenção a meninada, série por série, do pré-primário ao quarto ano, atentos aos ensinamentos, sermões, pregações e advertências, mestra e mãe ao mesmo tempo, alertando até para a higiene de cada aluno, a citação do nome de alguns (me lembro ainda), que, de sujeiras expostas atrás das orelhas, foram obrigados a tomar banho na escola, como exemplo.

Eu gostaria de me reunir com aqueles colegas que ali pararam ou que não valorizam o curso ginasial, e os que seguiram caminho adiante. Maria Evanilde, por exemplo, onde andará nos dias de hoje, com seu rosto redondo e seu corpo de moça? Cleonair, meu Deus, será esse mesmo o nome, alta, cabelo comprido e cheio de cachos, que deve ter parado ali, onde andará? Talvez sejam, hoje, abnegadas avós. Djalmira fez o ginásio na minha turma, mudando-se para São Paulo, onde as notícias se perdem na viagem de ida. Quem mais era quarto ano, além de Bosco, meu irmão? Maria das Graças de Zé Gordinho? A memória tenta retroagir nos fatos sem conseguir sucesso, pobre de minha memória encharcada de outras lembranças, falhando num momento como esse em que gostaria de reconstruir a escola de Maria de Branquinha.

Um dia, fatal dia, a escola de Maria de Branquinha fechou as portas. O salão ganhou outra serventia. A palmatória (ah, a palmatória), por certo, foi se esconder na lata do lixo, ela que deveria estar guardada em um museu, dentro de uma redoma de vidro, com placa de bronze a registrar: “Palmatória usada na escola de Maria de Branquinha. Quem dela não apanhou, atire a primeira pedra”. Era o símbolo de uma autoridade que se fazia respeitar por todos, até pelos pais dos alunos.

Na impossibilidade de reconstruir a escola de Maria de Branquinha, refaço o itinerário vivido quando, num domingo, ao lado de Bosco, guiado por papai, no final do ano de 1957, fomos à casa de Maria de Branquinha, onde papai perguntou se tinha vaga para os dois filhos. Tempos bons, de simplicidade, de ausência de taxa e de registros. Maria de Branquinha dava papa, de banana batida, a Zé, ainda de braço. Em janeiro, 1958, começamos. Da primeira aula, não me lembro, nem da última. Quatro anos sob sua batuta, de janeiro a dezembro, sem direito a um mês sequer de férias, até que, numa noite, em torno de uma sala, em sua casa, os poucos alunos do quarto ano (seriam quantos? cinco? seis?) se despediram, de Maria de Branquinha e de sua palmatória, de sua disciplina e de suas aulas, desligados da idéia exata da valorização que fariam, a vida inteira, de terem sido alunos de Maria de Branquinha. O Educandário Nossa Senhora Menina ficou para trás, como algo positivo no plantio da primeira e importante semente.

Na minha reconstrução, se possível fosse, deixaria de lado as aulas de catecismo, na Igreja, com dona Pastorinha. Que saco!


(*) vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Correio de Sergipe