terça-feira, 27 de abril de 2010

Quem é Você?



Um Conto em Tempo de Meditação

por

J. A. Horta da Silva 
(14/ 03/2010)






«Quem é você?» retorquiu uma celebérrima escritora no decurso de uma sessão de interpelação que se seguiu à palestra “O Liberalismo e as Tendências Literárias Portuguesas do Século XIX” proferida num Centro de Artes do país. A questão, que havia sido posta por Emanuel, prendia-se com a influência de Almeida Garrett no Romantismo versus o arrojo deste insigne homem de cultura ao publicar o poema “O Retrato de Vénus”, que lhe valeu a acusação não só de materialista e ateu, mas também de abuso de liberdade de imprensa. Fundador de uma loja maçónica, Garrett – liberal, combatente de armas contra o absolutismo, escritor, embaixador e tantas coisas mais – teve uma adolescência norteada para a vida eclesiástica por interferência do tio Frei Alexandre, bispo de Malaca e mais tarde de Angra. Encolhido no agasalho do seu desvelo pela literatura, Emanuel sorriu-se para a palestrante e, com um à-vontade próprio de quem está habituado a sacrifícios de monta, cobriu a sala de pasmo ao responder com convicção: «ninguém» tal como havia feito D. João de Portugal, ao regressar a casa disfarçado de romeiro, anos depois da batalha de Alcácer Quibir. A mulher, não resistindo ao vazio da longa espera, havia-se casado com outro homem.¹

Emanuel trilhava por esta altura o apogeu da vida adulta metido nos seus quarenta e poucos anos e, embora preferisse o Modernismo e o Neo-Realismo como correntes literárias, continuava avesso às facetas anti-clericais do liberalismo, republicanismo e comunismo, muito embora aceitasse que as duas primeiras correntes políticas obrigaram a Igreja a viver menos fechada sobre si mesma e mais tolerante. À revelia do que aconteceu com Garrett, foi seminarista, muito embora não chegasse a ser ordenado padre por caprichos que a vida gosta de propiciar. Crestado pela dação a uma intelectualidade pouco canónica, deixou o seminário quando roçava o fim do curso atirando-se, por conta e risco, à vida ascética. Aceitava que os monges convivessem com a presença do sagrado, quer labutando sob o calor do deserto ou sob o frio da montanha, quer meditando enclausurados na grandeza das suas exíguas celas. Mas a dúvida persistiu mesmo depois de um franciscano, imbuído da bondade agreste da penitência, lhe ter dito: «a alma de um monge é uma gruta da natividade à espera de Cristo nascer, mas o Natal só é alcançado por muito poucos e nunca por excesso de contemplação mística. O amor reside na verdade, mas a verdade é difícil de alcançar. Sempre que damos um passo em frente, a verdade gosta de dar um passo a trás». Desorientado, Emanuel sorveu textos admiráveis de Thomas Merton, mas deixou-se arrastar para o misticismo oriental influenciado pela leitura de Aldous Huxley e pela faceta histórica da vida de Sidarta Gautama.

Um dia resolveu ir até ao Jardim Botânico de Coimbra. Entrou pela porta dos Arcos do Jardim, contornou as estufas, desceu as escadas e sentou-se debaixo do gigantesco Ficus magnolioides que ali existe. Fez de uma das raízes o escabelo da sua preocupação e pôs-se a olhar o vácuo cheio de arvoredo, onde a abundância de espécies exóticas raramente é motivo de atenção. De facto, há no Jardim Botânico de Coimbra espécies que são o paradigma da existência de floras excêntricas – raras, longínquas e, nalguns casos, em vias de extinção – que constituem relíquias desse legado de que nós fazemos parte como o maior predador. Trazia no bolso uma carta oriunda de Glasgow que entregara ao desprezo por amargo de consciência mas, quando abriu o envelope, acordou da abstracção sob o sussurro de um arrastar de pés. Era um idoso, encarquilhado e frágil, que se deslocava a tropeçar nos passos da sua própria existência, a caminho de uma palmeira de onde colheu tâmaras podres, que começou a comer. Espreitou o homem e sentiu uma estranha sensação que lhe mostrou a primeira aparição de Sidarta “O Velho”. Contrariado, desviou os olhos e preferiu concentrar-se na carta de Hazle, ex-colega e amiga dos tempos em que militou na Legião de Maria:

… Aos poucos e poucos, tens vindo a perder a fé e eu, que sempre me alimentei dela, sou o patinho feio que te segue, a beber a crença que vais derramando …

Imerso nas imagens do passado, Emanuel não deu pela presença de um moço coberto pela síndroma da morte que, subitamente, se interpôs à leitura. Fixou o pedinte, com repugnância, meteu os dedos ao bolso e deixou cair uns trocos na palma de uma mão mosqueada de pústulas. O rapaz retirou-se, sem agradecer, procurou mais alguém a quem pudesse mostrar o desencontro da sua vida e foi-se. Emanuel levantou o olhar e fixou-se no tronco da árvore que estava cheio de inscrições. Eram nomes ao acaso, corações traçados por flechas, memórias em espaços perdidos. O Ficus magnolioides sangra leite quando é cortado. A árvore Bo de Gautama também sangrava leite, mas o sidoso pingava de penitência e sangrava as derradeiras agruras da vida. Emanuel voltou a olhar a carta, mas demorou a reencontrar o ritmo da leitura ao recordar-se da segunda aparição de Sidarta “O Doente”.

…Steve venceu os vícios do álcool e das apostas em galgos e cavalos. Anda sóbrio, traz o vencimento para casa e deixou-se de euforias em pubs. Mantém a paixão pelo Celtic e só perde o tino nos jogos com o Rangers. O padre Melani vai lembrando que o futebol é um tempero inócuo da vida e que devemos estar gratos a Deus por Steve ter vencido a bebida e o gambling, duas das grandes perdições da existência humana. Os amigos continuam a perguntar por ti. Vou dizendo que um dia destes apareces , mas sei que minto…

Sentindo um espasmo acerado que lhe apertou a alma, Emanuel tentou reagir, mas o arrepio trouxe, por companhia, o corpo desventrado e insepulto da terceira aparição de Sidarta “O Morto” Era uma dor que não remitia o remorso, não obstante Hazle tentar apaziguar-lhe o constrangimento.

…Por isso, não quero que tenhas pena de mim. Pensa em ti no sentido positivo da vida, entumecido da esperança que nos enleva o futuro. Quando não tivermos corpo, vamos ter tempo para analisarmos, em conjunto e serenamente, as contradições da nossa própria existência …

Emanuel quedou-se à espera da quarta aparição, mas o mendigo religioso e errante, “O Asceta”, não apareceu. Em seu lugar, surgiu uma algazarra de crianças. Junto ao Ficus, a garotada calou-se, enquanto a professora explicava o quê das coisas, num tom calmo, paciente e pedagógico. Os catraios estavam cobertos de pasmo a pensar como é que a árvore podia dar a borracha com que apagavam os erros. A professora disse-lhes que aquele tipo de árvores deitava um leite que, depois de tratado em fábricas, acabava por dar a borracha. As crianças desceram a escada à frente da professora e olharam para Emanuel, como se ele fosse parte integrante da turma e uma delas perguntou-lhe, como quem fala para o colega: «Onde está o leite que dá a borracha?» Emanuel guardou a carta e pegou num canivete. Os gaiatos transbordavam de expectativa, à espera da incisão, para ver a borracha antes de ser borracha até que a seiva brotou e a algazarra também. A professora agradeceu a ajuda, os catraios falavam uns com os outros e todos com ele, desejosos de apalpar o líquido espesso que corria, até que uma voz vinda de trás ciciou: «Não te sabia com dotes de educador de infância!» Emanuel olhou e viu Clotilde, uma amiga do tempo do Liceu. E ao som da algazarra que voltara, deixou-se integrar na excursão agarrado ao braço da colega. «Como é que apareces aqui, desta forma?» perguntou Emanuel, incrédulo de satisfação. «Vim ajudar a minha colega a dar uma aula no Portugal dos Pequenitos e, a pedido do acaso, alguém me mostrou o caminho que dá acesso ao Nirvana.

Quando da palestra sobre “O Liberalismo e as Tendências Literárias Portuguesas do Século XIX”, Emanuel acabara de chegar de uma missão na área Subsariana, onde trabalhava com Clotilde numa escola de um campo de refugiados. Tinham a seu cargo o ensino de crianças desnutridas, polvilhadas pelo pó do deserto e estavam felizes por terem encontrado o rumo certo das suas vidas.
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¹ Frei Luís de Sousa (Romance de A. Garrett)