É TEMPO DE PÁSCOA
Sebastião Heber
shvc50@gmail.com
A Semana Santa nos remete para a tragédia salvadora que completou a vida de Cristo em Jerusalém e que se repete cada ano sob a forma de espetáculos emocionantes. Em Salvador, no Dique do Tororó, a encenação feita dentro d’água faz da performance uma originalidade ímpar. Em Nova Jerusalém, no agreste pernambucano, milhares de pessoas se extasiam com a qualidade do espetáculo.Recentemente a cidade de Oberamergau, na Baviera alemã, foi visitada por jornalistas brasileiros e na entrevista com a equipe de atores germânicos, foi mostrado um vídeo da realização de Nova Jerusalém . Eles ficaram abismados com a qualidade de tudo e fizeram perguntas até sob aspectos técnicos, como, por exemplo, qual o truque do enforcamento de Judas. Aquele povoado alemão tem uma promessa que vem da Idade Média de realizar a cada 10 anos (não sei se atualmente já se faz anualmente)a encenação da Paixão de Cristo. É uma apresentação clássica. A de Nova Jerusalém é fruto de uma promessa do coronel Epaminondas que, de forma rústica, encenava pelas ruas do povoado, os passos da Via Sacra. Sua filha, Diva Pacheco, que chegou até a ser deputada estadual, casou-se com Plínio Pacheco, homem visionário, que, vendo filmes sobre a de Oberamergau, construiu uma réplica da cidade de Jerusalém, deu um cunho mais profissional, associou-se à Globo, e hoje, temos esse megaespetáculo dentro do maior teatro ao ar livre do mundo.
Nesses dias leio o livro que tem o título em epígrafe, escrito por Jaroslav Pelikan. É uma das obras mais belas e refinadas que já caiu às minhas mãos. Ele é um dos scholars mais respeitados do mundo e recebeu o prêmio Jefferson Award of the National Endowment for the Humanities , do governo dos Estados Unidos. É professor emérito de História na Universidade de Yale. Pelikan é autor de mais de trinta livros, entre os quais se destacam The Christian Tradition: a History of the Development of Doctrine e ainda mais recentemente, Mary Throug the Centuries.
O livro em foco não poderia ter uma capa mais bela: é um detalhe do Batismo de Cristo pelas mãos de Piero de La Francesca e na contra-capa há o quadro por inteiro.
O que se constata é que nenhuma outra figura teve sua imagem tão reproduzida quanto Jesus de Nazaré. Todo mundo tem em casa sempre alguma imagem de Cristo, o Sagrado Coração nas famílias mais antigas, um santinho na carteira, para proteger dos infortúnios, também no carro há sempre um decalque ou uma frase. O autor ressalta que, sua figura, representada nas mais diversas formas e contextos, foi adquirindo ao longo dos séculos, uma gama quase infinita de interpretações ”transformando-se num verdadeiro caleidoscópio ideológico”.
O autor revela no seu livro de que modo cada época recriou o Cristo de acordo com suas próprias forças e necessidades . O autor recorre a exemplos da literatura universal e a mais de duzentas ilustrações – de mosaicos bizantinos e iluminuras medievais, passando pelo Cristo Redentor da Baia de Guanabara – ele traça um panorama absolutamente fascinante da figura de Jesus de Nazaré, tal como a conceberam os homens nestes vinte séculos de existência.
Cristo é apresentado como o homem universal, que assume em seu rosto acolhedor os traços de todas as culturas, solidarizando-se com as angústias, as esperanças, os sonhos e as aspirações de todos os homens e mulheres , no decorrer das idades , na variedade multicor das raças ou nos diferentes tipos de civilização. O Rei dos Reis aparece, abrindo o mistério contraditório do sofrimento de toda a humanidade, condenado sozinho no sofrimento de sua cruz. Nesse livro constata-se que a arte e a fé vão sempre recriando um mundo de beleza , de confiança na fecundidade do amor, irmanando no mesmo ateliê de Cristo artistas de tradições tão diversas: Giotto,Fra Angélico, Michelangelo, Rafael, Dalí, Rouault, Chagall e toda essa tradição anônima e mística de transmissores de ícones, místicos e suaves, mediadores da graça e da glória divinas.
O livro brota do eu mais profundo do autor: “Creio que sempre quis escrever esse livro. Volto-me aqui para seu lugar na história geral da cultura”. E ainda acrescenta:”Certa vez Clemanceau observou que a guerra era um assunto importante e grave demais para ser deixado apenas por conta dos militares. Do mesmo modo, Jesus, Ele é uma figura por demais importante para ficar somente restrita à visão dos teólogos e da Igreja (e das Igrejas em geral)”. É por isso que no sumário desse livro, além de outros itens, ressalto alguns que correspondem a essa preocupação do autor: O Modelo Divino e Humano,O Homem Universal, O Homem que Pertence ao Mundo.
Independente das múltiplas crenças que permeiam o cenário da nossa sociedade, há pelo menos vinte séculos que Jesus de Nazaré é a figura dominante na história da cultura ocidental. É a partir do nascimento dele que a maior parte dos diferentes povos estabelece o calendário, é com o seu nome que milhões de pessoas amaldiçoaram e perseguiram (não nos esquecemos das Cruzadas e da “Santa” Inquisição), mas é igualmente em seu nome que milhões e milhões oram, fazem o bem e querem construir um mundo de paz para todos.
Vale a pena encontrar a conclusão do autor nesse livro magistral: ”Pela curiosa combinação dessas correntes de fé religiosa e erudição, com as não menos poderosas influências do ceticismo e do relativismo religioso, a universalidade com a particularidade de Jesus tornou-se, assim,tema do século vigente, não só dos cristãos mas de toda a humanidade. À medida que declina o respeito pela Igreja organizada (institucional), tende a aumentar a reverência por Jesus. A unidade e a variedade dos retratos de ‘ Jesus ao longo dos séculos’, demonstram que nele existe mais do que são capazes de sonhar a filosofia e a cristologia dos teólogos. No seio da Igreja, mas também muito além de suas paredes, a pessoa e a mensagem de Jesus são, nas palavras de Santo Agostinho, ‘uma beleza tão antiga e tão nova’, e que agora pertencem ao mundo”.
Na fé cristã, a Semana Santa tem o mistério de atualizar o que aconteceu no tempo. A eternidade de Deus entrou na nossa temporalidade e o Hoje dele, torna-se o nosso hoje. Isto é, o divino entra no humano para que o humano se torne divino. Então o mistério da Páscoa Redentora continua acontecendo . Então hoje é 5ª Feira Santa, é 6ª Feira Santa, hoje é Páscoa.
Sebastião Heber. Professor Adjunto de Antropologia da UNEB, da Faculdade 2 de Julho, Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris.