por Vladimir Souza Carvalho (*)
O primário, do meu tempo de menino, em Itabaiana, mantinha o aluno em completa redoma, a ponto de afastá-lo, completamente, dos vícios do cigarro. Ninguém, naquela época, nessa condição, pensaria em fumar. Era tacitamente algo proibido que a nenhum menino era dado a aventura de pensar em imitar um adulto nessa infeliz arte. Do cigarro, o único contato que tínhamos era uma brincadeira, no uso do papel da carteira, que, rasgado e colocado em forma de cédula de dinheiro, recebia, cada um, o seu valor, como se moeda fosse, na imitação perfeita das notas que circulavam à época. Astória, de capa amarela, era a nota de valor menor. Continental, de letras de cor azul, com o restante branco, lhe suplantava, perdendo, por sua vez, para Hollywood, onde predominava a cor vermelha. Recordo-me de outra marca, Lincoln, já em fase de extinção, através de uma carteira, que papai tinha em casa. Nenhuma outra marca ultrapassa a minha memória.
A meninada saia pelas ruas à procura de carteiras usadas, jogadas no chão. O trabalho que tínhamos era de retirar o papel fino, e, de dentro, o outro papel, para aproveitar apenas aquele que trazia a marca do cigarro. Meninos mais espertos mantinham no bolso volumoso número de carteiras, como os adultos ainda hoje fazem com a cédula de dinheiro, sobretudo os donos de barraca de feira. Não me lembro mais para que servia o papel de carteira de cigarro transformado em moeda. Sei que, alcançando o estudante o grau de aluno do ginásio, a brincadeira desaparecia de nossos costumes. Acredito que o tempo tenha provocado a sua extinção.
No ginásio, ou seja, no Ginásio Estadual de Itabaiana, o aluno saia da redoma de sua escola para se imiscuir com a coletividade das várias turmas de primeiro ano – em 1962, quando comecei, nos espalhamos por três, para espanto de todos; até então, o primeiro ano só enchia uma turma – e, aí, justamente aí, na ampliação de amizades novas e costumes desconhecidos, reunindo os estudantes, invariavelmente, à noite, na Praça da Matriz, tinha início, via da imitação, o ingresso do menino, ainda com doze anos, na perigosa arte de fumar.
Foi assim que, vendo os outros meninos aprendendo a tragar, como se aquilo fosse uma conquista de alta envergadura, que, infelizmente, também, para a infelicidade do meu pulmão, coloquei um cigarro aceso na minha boca, e, seguindo as regras ensinadas, comecei minha carreira de fumador, infeliz carreira que, durante vinte anos, enxertou fumaça e nicotina no meu pulmão. Os do meu tempo, todos, ou quase todos, isto é, a quase unanimidade, assim começaram a fumar, na Praça da Matriz, em meio as conversas, nos bancos, enquanto, passeando ao seu redor, as meninas desfilavam. Dos seis alunos da 1o. ano, classe C, a minha, cinco mergulharam a boca no cigarro. Número terrível, percebo, agora.
O cigarro, aquele tempo, era, infelizmente, uma forma de transformar o menino em rapaz ou em homem. Era a perfeita imitação do adulto fumando que procurávamos atingir, no manuseio do cigarro, que, naquele tempo, era vendido, como hoje ainda deve ser, nas bodegas e nos bares do interior, a retalho, o que tornava mais acessível o cigarro, e, mais danoso ainda, porque ficava fora do agasalho, bem exposto, o que lhe retirava a condição de novo.
O ginásio não tolerava o cigarro. A vigilância era terrível. Menino saindo de uma sala de aula sem serventia, sozinho ou em dupla, recebia a desconfiança de ter fumado. O professor Anito, que auxiliava a direção da casa, chegava a se aproximar da boca do aluno, mandando-o respirar de boca aberta, para aferir daí, por um resto de cheio de cigarro, se o estudante tinha fumado. Foi o mais terrível capitão de mato dos jovens fumadores. De uma certa feita, desconfiado de mim e de outro colega de turma, nos mandou esperá-lo na sala da diretoria. Fomos. A esta altura, chegou o Padre Artur, diretor mor, a nos perguntar o que fazíamos ali. Nada, respondi. Então, voltem para a sala de aula. Voltamos. No meio do caminho, lá vinha o professor Anito, agora a nos indagar o motivo de não estarmos na sala da diretoria, como determinado. Ora, o padre mandou a gente para a sala de aula. A resposta era, em parte, verdadeira. Naquele dia, escapamos do castigo que poderia ser aplicado aos fumadores de cigarro, ou a interrogatório mais complicado.
O estudante tinha a seu favor o fato de não usar carteira no bolso da camisa. Tinha um ou dois, comprado a retalho, bem escondido na pasta, em meio aos livros, o que facilitava o seu uso, em arriscados momentos de folga. No dia da passeata, que resultou na morte de Euclides, em 08 de agosto de 1963, lembro-me de, aproveitando o alvoroço do ginásio na arrumação de tudo, aulas suspensas, ter saído, ao lado de Verinaldo, para fumar do outro lado da cerca, aproveitando o fato do arame não ser farpado e da inclinação do terreno, o que nos permitia fumar sem ser incomodados, nem vistos pelos inspetores do ginásio.
Um dado interessante da meninada, naqueles tempos, era a imitação dos filmes de caubói. Muitos pregavam no fundo do sapato, ao lado do salto, uma lixa de caixa de fósforo, para, em pé ou sentado, com o uso de um talo, fazer o que a gente via no cinema, ou seja, o artista riscando o talo no salto do sapato. Aliás, essa imitação dos filmes de caubói se refletia também nas brincadeiras de “mãos ao alto”, no uso de um revólver na mão, na fabricação da estrela do xerife no peito. Mas, isso é assunto para outro papo.
O vício do cigarro me contaminou por vinte anos, na exclusão do apetite, na ojeriza ao doce, na vontade única de tomar um cafezinho a fim de colocar o cigarro na boca. Gripes permanentes, a magreza tomando conta do corpo, e, eu, inocente, colocando a culpa no tecido da calça, que teimava em querer cair. Indagando ao alfaiate, Paulo de Iaiá, de saudosa memória, me veio a resposta: não era o tecido que folgava, era a cintura que se tornava cada vez mais fina. Ouvi e não contestei.
Um dia, perto da Copa de 1982, em meio a uma tosse e um catarro comprometedores, senti balançar o coreto da vida, na exigência de uma séria tomada de decisão de minha parte. Não vi outra saída senão abandonar o cigarro, num esforço hercúleo, que terminou dando certo e que já se estende por vinte e sete anos. Na primeira audiência, depois, como juiz de direito de Campo do Brito, ouvi uma mulher que tinha apanhado do marido, em ação criminal que tramitava no termo de Macambira. Não conseguia articular a memória para o que a vítima me revelava, tendo de anotar em papel para passar para o datilógrafo. De qualquer forma, estava feliz, na libertação, enfim, do vício do cigarro, embora só tivesse, ao meu favor, dois dias sem o seu uso.
(*) vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Correio de Sergipe