professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Natal é festa de Deus entrando na história e realizando o milagre da Encarnação. É festa da Virgem Maria, dizendo SIM ao plano de Deus e ficando grávida do Espírito Santo, passando a trazer em seu seio aquele que seria o homem Jesus, conhecido como o Galileu. É a festa do amor, da aliança de Deus com a humanidade, festa da Luz e da Alegria.
Por isso mesmo é a festa que nos ensina e nos relembra que nossa verdadeira e mais profunda vocação é sermos humanos, verdadeiramente humanos, profundamente humanos. Pois somente mergulhando fundo em nossa humanidade realizamos aquilo para o que Deus nos criou: sermos imagem de seu Filho que se fez humano aprendeu a ser humano, é humano sem deixar de ser Deus.
Assim, Natal é a festa de nossa vocação: vocação de sermos humanos. Achamos sempre que ser humano é algo que não se aprende. Já nascemos assim, já somos assim, já sabemos tudo sobre o que somos. É verdade apenas em parte. Ser humano é algo que se aprende. Senão, como se explica que tantas vezes agimos desumanamente? Como entender o fato de que em tantas situações nos comportamos mais animalescamente que o mais instintivo dos animais?
São muitas as ocasiões em que, em lugar de nos humanizarmos, nos animalizamos, nos vegetalizamos. E, pior ainda, em lugar de ajudarmos a humanização do outro, o animalizamos, o desumanizamos. Toda vez que não nos abrimos à solidariedade, mas violentamente guardamos tudo para nós, nos assemelhamos ao animal que avança e morde quem quer pegar sua comida. Toda vez que usamos irresponsavelmente nossa sexualidade, nos assemelhamos aos animais que, por instinto e guiados pelo olfato, sentem o cio da fêmea e o assédio do macho e copulam por instinto, garantindo a multiplicação da espécie, mas não vivendo o amor que é entrega e doação ao outro.
A Encarnação de Deus que celebramos no Natal quer nos dizer que Deus, sem deixar de ser Deus, abre mão de suas prerrogativas e entra na carne frágil e limitada que é a nossa. Aprende a ser humano, a ser temporal, espacial; a ter frio, fome, sede, calor e sono; a cansar-se e a sentir desânimo; a ter de superar angústias e a não saber o futuro; a caminhar em disponibilidade diante de um amanhã que pode levantar-se ameaçador ou sorridente, trazer alegria ou opressão. Deus feito carne, feito ser humano, caminha na história para ensinar que ser humano é uma vocação alta, séria, que se aprende a cada dia, deixando a alteridade do outro requerer nossa atenção e nosso amor; deixando que o outro diga o que devemos fazer de acordo com suas necessidades e seus desejos; renunciando a nossas vontades e instintos imediatistas, para que o outro ocupe o espaço do nosso querer e nosso agir, através de seu rosto que interpela e constitui uma epifania.
O Natal é a festa dessa vocação comum a todos nós: o aprendizado de ser humano, único caminho de acesso ao verdadeiro Deus. A partir desta vocação que é nosso solo comum, desenvolvem-se então todas as vocações específicas, leigas, ordenadas, consagradas, religiosas. Porque é humano o homem um dia deixa seu pai e sua mãe para unir-se à sua mulher e formar com ela uma só carne. Porque é humana a mulher um dia deixa sua família e a proteção do lar paterno para unir-se ao homem que ama e dele gerar filhos e formar a sua família. Porque é humano um dia um homem atende ao chamado que lhe ressoa dentro do peito de não constituir família nem nada ter de seu a fim de colocar-se inteiramente a serviço do povo de Deus. Porque são humanos, tantos homens e mulheres renunciam a possuir bens, a constituir família, e a decidir sobre a própria vida, consagrando-se pelos votos religiosos e dispondo-se a ser enviados em missão longe de seu país, sua língua, sua cultura. E muitas vezes ali dão seu sangue e sua vida, como a religiosa americana Dorothy Stang, assassinada em Anapu, no Pará; como o jesuíta basco Ignacio Ellacuria, assassinado com toda a sua comunidade em El Salvador; como o eremita francês Charles de Foucauld, assassinado em pleno deserto islâmico, em terras touaregs.
A vocação primordial do ser humano é essa: ser humano. E viver plenamente essa humanidade poderá expressar-se de muitas maneiras. Porém, se a expressão primordial não estiver expressa e vivida, todas as maneiras e especificidades estarão falseadas, desviadas e não poderão comunicar nada aos homens e mulheres com quem convive. Só é testemunha quem é primeiro e antes de tudo humano. O Natal ensina isso, revelando ser esse o caminho que o próprio Deus escolheu: revelar quem é, manifestar sua divindade assumindo plenamente a humanidade.
Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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