quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

MARIA DE NAZARÉ


Ivone Gebara *


É hora de redescobrir o verdadeiro
rosto de Maria de Nazaré e ser, a
exemplo dela, capaz de gerar no
mundo a salvação, pela
misericórdia, justiça, partilha e
pelo respeito à vida.

São 6 horas da tarde. Apesar da agitação da cidade e da música barulhenta, comum na maioria das emissoras, algumas rádios em diferentes lugares do País ainda tocam a tradicional Ave-maria. Há uma mistura de sentimentos que atravessam os corações dos ouvintes. A maioria deles provavelmente nada tem a ver com a vida de Maria.

É como se essa música ao entardecer despertasse em nós uma misteriosa saudade súbita que brota do mais fundo de nós mesmos, misturada a lembranças vagas e imprecisas; recordações que passam rápido de um evento a outro. São lembranças de paz, de ternura, de compreensão, que afloram talvez com a saudade da Maria de nossa infância e de nossa vida, que chamamos de Nossa Senhora, vestida de branco, com manto azul, carregando um menino nos braços e trazendo com ele nossos sonhos, segredos e esperanças.

O momento da música é passageiro - apenas alguns minutos de pausa benfazeja, que nos introduzem numa espécie de parênteses cheio de sentido, até voltarmos novamente à atividade cotidiana.

Podemos prolongar o momento bom da música de outro jeito, refletindo sobre aspectos que são além de nossos sentimentos, das diferentes imagens de Nossa Senhora e dos vários nomes que recebeu ao longo da tradição da Igreja.

Convido os leitores a tentar encontrar o rosto de Maria, a Maria de Nazaré, aquela que está na base de nossas devoções e de nossa fé. Isso não significa que conseguiremos retraçar sua vida histórica com fidelidade. A poeira dos séculos torna esta tarefa quase impossível. O que conseguimos é apenas situá-la como pessoa, como mulher de carne e osso como nós. E isso já é muito.

Aproximar-se de Maria como pessoa é devolver-lhe seu rosto humano, suas possibilidades e qualidades humanas, sua realidade histórica e, ao mesmo tempo, é como se nós também nos humanizássemos mais e nos tornássemos mais responsáveis uns pêlos outros.

As pessoas que têm filhos se alegram quando estes chegam à maturidade e se tornam capazes de se responsabilizar por sua vida e pela vida dos irmãos. Tornam-se então adultos, capazes de amar, de buscar caminhos de justiça e misericórdia. Sabemos que toda dependência excessiva diminui a pessoa humana. Se alguém espera tudo de alguém, há algo que não está muito bem nessa relação. A atitude de quem joga sempre a responsabilidade de seus atos sobre os outros denota um significativo grau de imaturidade.

O mesmo acontece com nossa relação com Maria, quando não descobrimos o seu rosto humano. Apesar dos ensinamentos que a distanciaram de nós, ela foi e é pessoa. Não podemos fazer dela uma deusa toda poderosa distante da vida cotidiana, uma deusa cuja imagem é facilmente manipulável pêlos poderosos deste mundo.

Sabemos que houve chefes de Estado, inclusive na América Latina, que nomearam Nossa Senhora como comandante de seus exércitos, os quais serviram para reprimir e tirar a vida de muita gente. Evidentemente essa Nossa Senhora comandante de exército não é a Maria de Nazaré, uma mulher que abraçou os ideais de liberdade de seu povo - ideais de partilha e misericórdia que São Lucas exprime tão bem no magnificat (Lc 1,46 a 55).

Ávida nos desafia a contemplar o verdadeiro rosto de Maria de Nazaré, anterior a todas as histórias de aparições de Nossa Senhora. As aparições devem ser situadas na tradição religiosa de um povo, sempre envoltas de muita complexidade. A atitude de respeito é a mais indicada no que se refere à diversidade dessas aparições. Não podemos parar nas discussões sobre sua veracidade ou não, mas ir em busca do verdadeiro rosto de Maria, que os Evangelhos e a memória histórica podem nos ajudar a recuperar.

Contemplar o rosto primitivo de Maria nos faz amá-la de outro jeito, isto é, através do amor aos irmãos. Ela passa a ser para nós símbolo do amor que temos uns pêlos outros capaz de gerar relações mais fraternas entre nós. Dessa forma, saímos da relação de dependência infantil, da situação de pedintes que esperam tudo de sua senhora, para uma relação igualitária, em que de certa forma nós nos tornamos Maria uns para os outros. Isto significa que passamos a nos comportar como pessoas capazes de gerar o divino no humano, capazes de gerar, em nossa carne, aquele Jesus que não calou sua voz para denunciar injustiças, que se abriu aos marginalizados, que viveu a ternura e a misericórdia no cotidiano da vida.

Essa perspectiva modifica nossa relação com Maria e até nossa oração. Nesse sentido, quando rezamos a ave-maria, nós nos incluímos nessa oração. Somos cheios da graça do Espírito, capazes de dar frutos benditos e de gerar justiça, bem, perdão, compreensão, partilha e amor.

A ave-maria se torna mais do que uma reza ou uma devoção: transforma-se numa oração que nos compromete a ser como Maria é, segundo nossos lábios dizem. Passa a ser uma proposta de modificação de nossa vida, que nos obriga a ações concretas no sentido de melhorar o mundo e nossas relações. Por isso, as pessoas que rezam o terço deveriam se esforçar por fazê-lo como um ato de consciência de sua própria vida.

Assim, tornariam seu coração não só repleto da presença dos sofrimentos e alegrias de Maria, mas também dos sofrimentos e alegrias de nosso povo, das pessoas próximas ou mais distantes, que carregam os pesados fardos do cotidiano. Essa oração feita como ato de consciência deveria nos levar ao compromisso de ajudar a suprimir as injustiças que estão em nosso meio e a crescer em sensibilidade e solidariedade humana.

Os chamados mistérios da vida de Maria são também os mistérios da vida do povo - nossos mistérios de sofrimento, de gozo e de alegria.

À medida que aproximamos Maria de sua realidade profundamente humana, estamos fazendo justiça a ela.

E Maria de Nazaré que nos ajudará a entender as devoções que os séculos de cristandade lhe fizeram e as histórias que dela contaram. É ela que vai nos dizer que, para além de cada aparição - Fátima, Lourdes, Salete, Carmo - e de cada nome - Aparecida, Conceição, das Graças, dos Anjos, do Perpétuo Socorro -, existe uma pessoa com um rosto parecido com o nosso que levou uma vida tentando ser ela mesma repleta do Espírito Santo e ajudando outras pessoas a serem igualmente habitações do Espírito. Ser moradia do Espírito é o convite que Maria de Nazaré nos faz. Não é fácil de ser aceito, mas é um caminho para a felicidade dos que crêem que o dom da vida é dado em abundância para toda a humanidade.

E triste ver que nossa sociedade esquece o direito à vida entregue misteriosamente como dom a todas as pessoas. Nossa sociedade exclui homens, mulheres e crianças dos bens a que têm direito, impondo a lei do mais forte, a competição desenfreada, a morte camuflada, o lucro como deus.

E o lucro é um deus terrível, sedento de si mesmo, que beneficia poucos, conservando-os em tronos de ouro, enquanto a maioria se alimenta com migalhas, tentando sobreviver com os restos dos banquetes idolátricos. Este ídolo engole vidas sem se preocupar com seu valor. E ele, infelizmente, tem sido a divindade de nossa sociedade. É preciso colocá-lo no seu devido lugar para que nossa vida seja respeitada.

São 6 horas da tarde... É de novo a hora da Ave-maria. É hora de despertar para a Maria de Nazaré que dorme em nós. Precisamos nos dar as mãos para sermos coletivamente Maria, habitação do Espírito, cheia de graça, força e vigor, capaz de gerar no mundo a salvação pela misericórdia, pela justiça, pela partilha e pelo respeito à vida de cada um. Juntos poderemos repetir, então, de forma nova e com convicção: "Eis-nos aqui, servidores do Espírito que é vida. Faça-se em nós a sua Palavra". Amém.

"Agiu com a força do seu braço,
dispersou os homens de coração
orgulhoso. Depôs poderosos
de seus tronos, e a humildes exaltou."
(Cântico de Mana - Lc l ,51 -52)


* Filósofa e teóloga, feminista e escritora