domingo, 30 de outubro de 2011

O TOCADOR DE BARÍTONO E O TEMPO


Vladimir Souza Carvalho *


          Morávamos até perto. Eu, na Rua do Sol. Ele, na Rua das Flores. De minha casa, avistava a sua e vice-versa. Mas, nem nos cumprimentávamos. Foi preciso estudar na Filarmônica Nossa Senhora da Conceição para, enfim, dele me aproximar. Eu, aprendendo a conhecer as notas musicais. Ele, tocando barítono, a receber sempre a reprimenda de Antonio Melo para fazer o som sair de forma suave.

          Das notas musicais, fui promovido para solfejar os dobrados, e, daí, me colocaram uma trompa na mão. Aprendi a soprar, assimilei a função da trompa, e estreei, sem nenhum sucesso, na banda, sendo socorrido pelo maestro quando passei a tocar no compasso errado. Escapou-me o domínio do tempo certo que, depois, com o passar dos ensaios, me foi chegando. Da trompa pulei para o trompete, no que ainda hoje me arrependo. Deveria ter me especializado no saxofone, ou, até no clarinete. Mas, a observação é só desabafo inútil.

          A partir de certo momento, outras ocupações me tiraram da banda. Já morava em Aracaju, estudava direito, não freqüentava os ensaios durante a semana. Sai, aproveitando o fato, o trompete se enferrujando, eu perdendo, até hoje, a embocadura, e, também, o contato por mais de trinta anos com o tocador de barítono.

          Um dia, num jogo de futebol, em um dos campos da Associação Atlética da Caixa Econômica, nos encontramos para falar das tocadas passadas, porque, pelo distanciamento, outra matéria, senão os tempos em que íamos juntos para os ensaios da banda e, lá para as tantas, voltávamos conversando miolo de pote. Depois, recebi uma visita sua, no gabinete da 2ª. Vara. Trazia uma filha de companhia. E aí soube da tragédia. A filha, contadora, preparara algo que incidia no campo penal, e estava sendo processada, justamente na minha vara. O interrogatório seria na semana seguinte. Ela, a filha, calada, os olhos refletindo a angústia de quem ia para a forca.

          Resolvi brincar com a miséria alheia. Verifiquei a pena máxima, se procedente a denúncia. Dois anos. Num intervalo, procurei acalmá-los, dizendo que não havia necessidade dela estar nervosa. Afinal, a pena máxima era só de dois anos. E o que era dois anos na cadeira? Quase nada, o tempo passava tão rápido que ela não iria nem sentir. Malvadeza minha, no duro, admito. A filha arregalava mais os olhos. Ele, como pai, enfim, interveio. Não diga isso senão ela morre agora. Ri, dissipando o nevoeiro. Falei sério. Haveria proposta de conciliação. Expliquei tudo direitinho, o que, realmente, veio a ocorrer na audiência que foi realizada na semana seguinte.

          Não o vi mais. Talvez passemos trinta anos para novo contato, se ainda estivermos por aqui. Prometo fazer outro registro, para que o reencontro não passe despercebido, rezando para que a filha não se meta em outra ação penal, porque, a esta altura, já estarei regiamente aposentado.


Publicado no Diário de Pernambuco