domingo, 8 de maio de 2011

A SEMANA DE SANTA DO ANTIGAMENTE

Vladimir Souza Carvalho (*)


Na igreja, as imagens eram cobertas de um tecido roxo, o que dava um tom medievalesco ao cenário. Só depois do sábado de Aleluia é que se retirava o pano. O ritual se repetia ano a ano, e, a gente, na frente dos altares e das imagens, a apreciar, calado, sem entender o motivo que fazia a reiteração de todos os gestos e atitudes. Ah, sim, vivíamos a Semana Santa dos feriados da quinta e da sexta-feira.

Até o cinema de Zeca, na noite de sábado, era Semana Santa, com um filme, com título, salvo engano, de Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, a atrair o pessoal da cidade e a população católica dos povoados próximos, cheio, impecavelmente, cadeira por cadeira, e, ainda a fileira que se improvisava no meio. A película era tão velha, as imagens trêmulas, o branco tomando conta de tudo, um esforço danado que se fazia para distinguir os artistas, que, muitas vezes, se pensava cuidar-se de filme rodado no momento em que os fatos, ali tratados, se desenrolavam.

Mesmo assim, anualmente, o cinema enchia e muitos terminavam indo, outra vez e mais uma vez, assistir a mesma coisa, como se cuidasse de uma fita velha que o cinema conservava para exibir, religiosamente, em toda Semana Santa.

Mas, o que me sobe à memória e mexe com o coreto do coração é a figura de papai, na sexta-feira da Paixão, jejuando a manhã inteira e a manhã inteira fazendo a propaganda do jejum, que eu não sabia, ontem, como não sei hoje, confesso, para que servia. A conversa, no mesmo tom, se ouvia até que o almoço era colocado à mesa, e papai comia que nem um jegue o feijão com coco, o peixe com coco, o arroz com coco, que mamãe, sozinha, internada na cozinha, paciente e heroicamente, preparava.

E papai comia com a mão, desprezando o garfo, misturando tudo como se fosse um bolo, molhando cada bocado no pires, onde o molho de pimenta, por ele feito, se alojava. E lá se ia o jejum para o beleléu, e papai, ali, no centro da mesa, se esbaldando com o peixe preparado no coco, enquanto a filharada, ao redor, sem acompanhá-lo na capacidade de comer tanto, se deliciava com a cena.

A Semana Santa era isso e mais os sermões que ele, que não comia carne na sexta-feira, encenava, a relembrar frases de religiosos importantes, na bandeira de que não fazia mal o que entrava pela boca, porque o mal existia no que saia, ou seja, no que o homem dizia, lições que ouvíamos calados e que, ainda hoje, me lembro, como se tivessem sido proferidas ontem.

Mas, não foi ontem que as ouvi. Foi há muitos anos atrás, quando ainda não raspava a barba, porque a sexta-feira da Paixão representava também, no calendário de minha barriga, o único dia em que se comia peixe lá em casa, e, preparado com coco, a gordura esbaldando no prato, a chamar à lide um bocado de farinha, e na mistura, a farofa, se constituindo em uma atração da Semana Santa, na impossibilidade de se admitir uma sexta-feira da Paixão sem o peixe que mamãe preparava.

Pois sim. Há vinte e um anos que papai morreu. Mamãe, internada numa cama, vítima de derrame, não se comunica, nem sabe mais o que é Semana Santa. O modesto banquete que preparava é apenas uma página de décadas e décadas atrás. A morte calou a voz de papai e deu o sinal de finalmente aos seus sermões na sexta-feira da Semana Santa. E, por incrível que possa parecer, não consigo me lembrar dos pratos que, crescido, passei a comer, no almoço da sexta-feira aludida. Nem o da sexta-feira da última Semana Santa me vem à tona. Mas, o almoço, da sexta-feira, do meu antigamente, está bem vivo, e é invocando esse peixe com coco que debulho a minha saudade dele e sofro com a situação dela, que, no dia de ontem, presa a uma cama, talvez não tivesse se lembrado do peixe com coco que marcou a sexta-feira da Paixão dos meus tempos de menino.


(*) vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Correio de Sergipe