segunda-feira, 21 de março de 2011

A SAUDADE



Tassos Lycurgo*
www.lycurgo.org


          Confesso que, a despeito das minhas inúmeras tentativas, nunca aprendi muito bem para que servem as palavras; mas, o contrário disso, ou seja, entender para que desservem, sempre foi a minha especialidade. Há algumas, é bom que não se esqueça, que são menos servíveis do que outras, a ponto de chegarem à completa inutilidade. Já lhes adianto que tenho, entre as do vernáculo, aquela pela qual nutro menos apreço, por considerá-la, entre as palavras, a embaixadora da falta de préstimo.Falarei a seguir sobre ela.

          Entre tantos vocábulos que, a meu sentir, não apresentam qualquer serventia, encontra-se a palavra "fim". Ora, "fim", com suas únicas três letrinhas, não é capaz de aniquilar completamente com nada, de extinguir por definitivo nenhuma situação, mantendo ainda na existência o que, nos termos que a palavrinha quer dar a entender, deveria de muito já ter acabado.

          Como daria um trabalho enorme defender a tese de que deveríamos oferecer mais noventa e sete letras à palavra sob questão, já que absurdamente só tem três, uma alternativa seria dar mais vigor às que lá já se encontram. Ao refletir à exaustão sobre a possibilidade de apurar, veementizar, energizar as inofensivas letras, cheguei a uma idéia.

          A idéia, descrita de forma resumida, seria a de se determinar que a palavra "fim" trouxesse em si, respectivamente, um “f” de fogo, um “i” de incêndio e o "m" de maçarico. Teríamos, assim, uma palavra incendiária, que aniquilaria, que exterminaria, que calcinaria tudo que pela frente encontrasse... Bem, quase tudo, pois, mesmo depois que ela, embora pequenina, queimasse o mundo até o ponto de se pensar que nada mais ali restaria, lá ainda se poderia ver aquele conhecido montinho que remanesce, qual seja, o de cinzas.

          É fato que depois do incêndio, por pior e mais devastador que seja, ainda estarão lá os resíduos, que, no estranho mundo dos desserviços das palavras, deveriam, isso sim, ser chamados de "saudade". É isso: a saudade é umn monte de cinzas, que ainda resta depois da ação do fogo, do incêndio e do maçarico. Se pelo menos aprendêssemos a chamar as cinzas de saudade, saberíamos desde cedo de alguma coisa importante.

          Saber de alguma coisa, nada obstante, é saber de quase nada, principalmente quando o assunto é a saudade. Realmente, a saudade é o mais peculiar dos sentimentos. Note que a angústia, a dor moral e o desespero, que não são saudade, doem como algo que está nos cortando de dentro para fora, nos ferindo, nos muti1ando. A dor física e a inveja, por exemplo, doem de fora para dentro.Tanto esse tipo de sentimentos quanto aquele, às suas maneiras, nos ferem, mas a saudade, diferentemente de tudo isso, não golpeia, mas é o próprio corpo ferido e golpeado.

          A saudade, tal como um corpo escoriado, esfolado, dói, é fato, mas dói porque nos sentimos incompletos, porque nos sentimos menos do que somos e, diante disso, a sensação é a de que não podemos fazer nada, pois fazer algo contra a saudade seria fazer algo contra nós mesmos, já que ela, de forma diversa do que acontece com os outros sentimentos, não está presente em nós, mas é a nossa própria personificação. Eis por que há os que sentem saudade da saudade, pois estão, nesses termos, sentindo saudade de si mesmos, em outros momentos.

          Pode-se dizer, assim, que a saudade é um sentimento de incompletude potencializada pela impotência e, por isso, não é a dor da mutilação, como muitos assim o pensam, mas a dor da constatação de que se está mutilado. Sentir saudade é sentir-se menor do que era; é sentir-se inacabado quando antes já estávamos, pelo menos de alguma forma, sentindo-nos verdadeiramente prontos.

          Eis, pois, o único sentimento que se confunde com a pessoa que o sente. É exatamente por isso que não há saudade como algo isolado, mas apenas no sujeito que sofre. Somente há saudade nas lágrimas que nunca se chorou, no grito que nunca se gritou e no próximo parágrafo deste texto, que jamais poderá ser escrito.



Obs: Imagem retirada do texto do autor em seu livro Variações do Indizível – Ensaios de Risco .
Ilustração de Cristal criada especialmente para o ensaio.


(*) Tassos Lycurgo é Professor Adjunto da UFRN e Advogado (OAB/RN); É Doutor em Estudos Educacionais – Lógica (UFRN), com pós-doutorado em Sociologia Jurídica (UFPB); Mestre em Filosofia Analítica (University of Sussex, Reino Unido); Graduado em Direito (URCA) e em Filosofia (UFRN). Atualmente, leciona as disciplinas Direito Processual do Trabalho e Elementos de Direito Autoral e Legislação Social na UFRN. Página Acadêmica: www.lycurgo.org