Maria Inez do Espírito Santo
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Tanta gente me falou do filme “Cisne Negro” e foram tantas opiniões controversas, que, instigada pela curiosidade, dei à oportunidade de assisti-lo a função de quase tarefa: eu precisava entender o porquê do despertar de sentimentos tão intensos e difusos.
Já de início me lembro que o tema de “O Lago dos Cisnes” me faz reviver os primeiros recitais a que assisti na minha infância. Tanto como concerto, quanto como espetáculo de ballet, a música me trazia (já no tempo em que o romantismo e a angústia apenas ensaiavam os lugares que ocupariam na minha história), uma densidade e uma comoção inesquecíveis.
Mas “Cisne Negro” me levou além disso. Ou, talvez, aquém. Mas, com certeza foi muito mais intensa, dessa vez, a visitação ao lago profundo de meu psiquismo. Há que reconhecer que o filme conseguiu esta proesa: fazer-me atravessar os limites rigidamente guardados por minha censura.
É difícil lidar com a inveja. Quem não sabe disso? Tanto no lugar do invejado, quando assumindo o lugar do invejoso, sofremos de uma impossibilidade corrosiva e implacável. Nada do que o invejado possa fazer, minimizará a força do desejo mal conduzido do invejoso, de quem se julga vítima. Nada do que possamos alcançar por nossos méritos e esforços, trará descanso ao incômodo de não sermos o que o outro é, e que, às vezes, nos parece tão melhor, tão mais prazeroso, tão mais reconhecido, virtuoso, talentoso ou como quer que nomeemos as qualidades ilusórias que projetamos no objeto da filha bastarda de nossa admiração, a inveja.
Como crescemos acreditando nas lições de uma falsa moral que nos apresenta a inveja como pecado, tratamos de escondê-la, principalmente de nós mesmos. Quem tem coragem de se declarar invejoso de nascença, como Melanie Klein ousou afirmar que todos somos?
Mas, levados no deslizamento vigoroso e ao mesmo tempo encantador do Cisne Negro, deparamo-nos com a pior das invejas. Melhor dizendo, com a propulsora de todas as outras invejas: a inveja de si mesmo. Duplos, na inscrição pulsional que nos destina a lidar com amor e ódio, com vida e morte, com bem e mal, por toda a existência, havemos de aprender (e quanto antes melhor!) a respeitar e guardar reverência aos nossos dois aspectos constitutivos: eros e tanatos, Freud os nomeou. E respeitosamente, havemos de aprender a cuidar deles, como irmãos gêmeos que são, ainda que antagônicos.
Quando a educação nos estimula a pôr na gaveta, debaixo do tapete e dentro do fígado, os sentimentos ditos negativos, esquece de nos alertar para o poder crescente que eles têm, quando sufocados por muito tempo.
Brota, na pele da bailarina do filme, aquilo que ela não pode mais conter. “O que será que me dá, que brota à flor da pele?...” cantou o poeta, traduzindo pela arte da palavra a percepção daquilo cuja existência latente não pode ser negada. Ainda que se tente arrancar a máscara, ela adere, metamorfoseando-se infinitamente, para escapar de ser desprezada, jogada fora, porque tem uma função que precisa cumprir: de ser o avesso do avesso, diria outra canção, que se embasa em no mito de Narciso.
O fracasso ao triunfar é outro dos temas que mestre Freud, que passou pela vida declaradamente experimentando essa alternância de posições que a inveja impõe e que, por isto mesmo, não foi poupado de sofrer terriveis momentos, dentro de sua gloriosa jornada profissional.
Poder deixar que nossa força criativa se expresse em toda sua punjança, implica acolher a reação da nossa própria força destrutiva, que, ameaçada, investe desesperada em busca de garantir um lugar para si mesma, que julga ilegítimo e inalcançável.
Pôr no outro (mãe, colega, parceiro, mestre...) a responsabilidade pelo que não suportamos ou não conseguimos ser é apenas um jogo perverso com o espelho. Quebrado, ele reproduz, incontrolavelmente, em cada um de seus múltiplos pedaços, os demônios que reflete.
Apenas a integração do cisne branco com o cisne negro, dentro das águas misteriosas de nosso inconsciente, pode trazer a quebra do feitiço...
Mas o filme que trata da magia, capaz de desfazer o encantamento, já é um outro, de não menos força ou beleza: “Incêndios”. Chegaremos nele...