segunda-feira, 27 de setembro de 2010

AS ANEDOTAS DE VISTOS ETC.

Vladimir Souza Carvalho *


Um dos caminhos a ser percorrido pelo magistrado, que deixa a toga pela força da vassoura, isto é, da idade, e que não tem vocação para a vida acadêmica, nem saco para a advocacia, é o de escrever, na produção de livros, seja na área jurídica, seja na da prosa, aproveitando aquilo que a vocação rege e indica. A prova maior está com Artur Oscar de Oliveira Déda, que, semanalmente, em dia nobre, consigna artigo no Jornal da Cidade, para deleite de todos nós, seus leitores. Luiz Carlos Fontes de Alencar brilha nas academias de letras de Brasília, em atividades escancaradamente culturais. Bendita, assim, a aposentadoria que favorece os que gostam de escrever, e, assim devem proceder.

Pascoal Nabuco situa-se nessa esfera. Não distante da aposentadoria, publicou o primeiro livro. Agora, aposentado, volta à lide livresca, com outro, de menor tamanho, com título arrancado das sentenças dos mais antigos: VISTOS ETC., trazendo uma manchete como subtítulo: O Judiciário sergipano nos últimos trinta anos (Aracaju, Gráfica J. Andrade, 2009, 259 pp.), decorrência do tempo que, agora, despojado da toga da atividade, lhe é favorável, sem ter mais em sua agenda os recursos, os votos, as pautas, as sessões e os pedidos de preferência dos senhores advogados. Enfim, livre, na solidão do gabinete doméstico, para poder produzir, sem os grilhões dos compromissos da desembargadoria, algo sem conotação algum com os votos obrigatórios dos tempos de atividade judicial.

VISTOS ETC., livro I, apresenta uma série de notícias, quase uma prestação de contas, sem maiores atrativos a não ser para servir de subsídio para quem, amanhã, se disponha a escrever sobre a trajetória do judiciário estadual sergipano nos últimos trinta anos, enriquecido com fotos e com gráficos ilustrativos. Não é o meu caso.

Mas, é na segunda parte, ou livro II, que Pascoal Nabuco veste o trajo de contador de histórias, para cravar no papel, e se de livro, melhor ainda, uma série de casos pitorescos, e picarescos, vividos dentro das quatro paredes do Judiciário sergipano, a adoçar a figura de magistrados e membros do Ministério Público com o mel do fato diferente, do tipo quebra protocolo, que, ocorrido na intimidade do Poder mais sisudo da República, ganha, por isso mesmo, a divulgação devida, e, mais do que isso, eterna. São fatos e fatos que deixam de serem conhecidos de uma meia dúzia de privilegiados, para, nas páginas de um livro, oferecer, hoje e amanhã, a uma coletividade, um retrato dos homens ali referidos e citados, sob um ângulo bem diferente daquele que a cara fechada (de alguns), nas fotos penduradas em galerias, direciona.

Nesse andar, se enrola na bandeira do pioneirismo, por ser o primeiro a assim se portar, em nível de Judiciário sergipano, circunstância a ser sempre destacada quando outros se propuserem a explorar o mesmo fato, ou seja, a piada, a anedota, a ocorrência picante, sempre e unicamente no âmbito do Judiciário, nas salas de audiências, principalmente, a apresentar quase que unicamente, como figura central o magistrado, ou o promotor, e ter, invariavelmente, como palco, o fórum ou o pequeno círculo da instância revisora.

É certo que há alguns poucos senões históricos, data vênia (olhe aí a linguagem forense me traindo). V. g.: [1] na criação da comarca de Ribeiropólis, o governo de então era de Augusto Franco, e não o de Lourival Baptista (p. 141); [2] não me consta que Gileno de Jesus tenha sido juiz eleitoral em Itabaiana (p. 192). Mas, na piada, o dado histórico é, muitas vezes, irrelevante, porque o que vale mesmo é o fato a provocar o riso, e, por isso mesmo, se transforma, a partir daí, em anedota, deixando a situação factual no plano secundário, que pode ser até omitido e não faz falta, porque uma outra se cria e toma corpo.

VISTOS ETC. mostra uma faceta nova de Pascoal Nabuco, materializada no contador de piadas, que, mesmo aposentado, se não tem mais a toga para vestir, se apresenta, ainda, de terno e gravata, guardando acrisolado respeito quando omite o nome do juiz que determinou a citação do de cujus, magistrado que todo mundo do Judiciário estadual do meu tempo sabia quem era (p. 211), ou o nome do promotor que também mantinha caso com a mulher casada na comarca onde exercia seu mister (p. 239), ou se soltando, um tanto timidamente, quando destaca a tradução do modus in rebus enfatizado, no fato contado, pelo des. Artur Oscar de Oliveira Déda (p. 203), e, também, numa linguagem simbólica, quando enfoca a hora do amor, uma das mais interessantes da coletânea (p. 209).

O livro exibe, justa e exatamente, aquele outro lado que o grande público não viu, não presencia, nem faz idéia, a mostrar que os homens-julgadores, de terno escuro, na maioria, também sabem fazer rir e igualmente revestem seus atos de um tom diferente daquele que a majestade do cargo impõe, suficiente para sair dos limites do sério e ingressar no anedótico. A Pascoal Nabuco, a peneira da paciência, no pincelar e registrar as jóias que a terra do tempo esconde, para, enfim, dar vida à criança que nasce e fica, como um fato singular, a merecer a edição do livro.

Dir-se-ia mesmo que VISTOS ETC., livro II, é um outro lado do judiciário (há outros e outros que a vã imaginação não consegue penetrar, nem focalizar), livre dos rituais e das liturgias, do cerimonial e das togas, onde cada um dos seus membros contribui com a parcela de seu bom humor para exibir um lance diferente daqueles que a linguagem, altamente técnica, de provimento concedido e provimento negado, deixa escapar, e de tão inusitado, se faz merecedor da placa do registro, já na condição de piada.

Só um pecado se gruda em VISTOS ETC.: não trazer mais e mais casos para o deleite de nosso riso.

* vladimirsc@trf5.jus.br
Publicado no Correio de Sergipe