segunda-feira, 12 de abril de 2010


Amesterdão e o Reverso da Vida



                   Retalhos de “A Última Ponte”

                                                            por
                                  
                                           J. A. Horta da Silva


Escritor (horta.silva@sapo.pt)


Amesterdão é uma cidade onde a dúvida se move ao sabor do inesperado. A arquitectura moderna afronta a arquitectura tradicional sem que esta perca o figurino e a postura de quem se sabe impor. O frio da rua opõe-se ao quente do interior das casas, sendo ambos desejados, a droga e os seus efeitos alucinantes despontam às claras e não colidem com a prostituição de montra. Os automóveis não se incomodam com a abundância de bicicletas, o tráfego fluvial não se queixa da imobilização dos canais e os patos aceitam, com naturalidade, serem desalojados por patinadores alegres e insensíveis ao arrepio proveniente da água espessamente gelada. Na Holanda, as estrelas são tão delicadas como as flores e as colinas não passam de acidentes franzinos insertos na planície que encerra uma imensidão de terreno roubado ao mar repleto de moinhos. O mar, de quando em vez, reivindica o naco perdido e, numa fúria, atira toda a sua força contra os diques que nem sempre aguentam e no ar, há um querer de um povo que comunga de uma confiança eventualmente aparente.

- Karen, repete o que disseste!
- Felicidade, amor e vida versus padecimento, desprezo e morte. Que queres que te dê Arnaldo?
- Dá-me o que for do teu agrado, desde que não me leve à desgraça!
- O meu querer nada fará para te magoar! Que seria de mim se te magoasse?
- Então voa como o tordo músico até ao topo daquela árvore nua e cobre-a de canto e de encanto.
- Os pássaros têm uma vida alegre, mas fugaz. Gozam de uma liberdade sem garantia.
- Mas vivem felizes na ilusão, e isso é bom!
- Cuidado…Arnaldo! Os humanos também podem ter uma existência feliz, mesmo que estejam condenados a uma morte anunciada.
- Tu és tudo para mim, mas impedes-me de usufruir essa realidade.
- Que fiz eu?
- Que fizeste tu? Ajudaste a arruinar as alternativas da minha vida! Achas pouco?
- Oh! Não creio que isso seja exacto! Quanto muito, poupei-te a outros contratempos.
- Sabes que não há futuro para nós?
- Era bom que estivesses errado Arnaldo! Mas dá-me a tua versão…
- É simples! Eu sou velho... e tu és nova! – Exclamou ele convicto da asserção.
- E se eu estiver doente, quem sabe se à beirinha da morte? – Retorquiu Karen, com uma expressão que procurava mitigar agruras ocultas em esconsos labirínticos da alma.
- De facto, o tempo nem sempre é isento. Não é raro dar, num dia, aquilo que tira depois.
- Sabes, eu também sou como o tempo, mas quando tiro sofro e sinto-me angustiada! De qualquer modo, vou dizer-te uma verdade que podes não gostar.
- Diz as verdades que quiseres. Não há mentira neste mundo que me agrade mais do que a verdade, desde que venha da tua boca.
- Pois é! – Respondeu ela, olhando a vidraça da janela ao correr da indiferença da paisagem. – É pena termos estado a falar de dois romances de amor: o teu e o meu. À primeira vista, parece que vivemos o mesmo romance, mas não é exactamente verdade.

Arnaldo e Karen estavam em Amesterdão de passagem para Eindhoven e Almelo, onde iam ver modelos recentes de microscopia electrónica e de espectrometria de fluorescência de raios-X. Encontravam-se hospedados num hotel tradicional, situado à beirinha do Herengracht. Por ali perto, andaram Descartes, Rembrandt e Espinosa. Tudo leva a crer que nem o acaso os juntou, embora pisassem os mesmos terrenos, separados por espaços temporais não muito longos. Quando Espinosa nasceu, Rembrandt pintava “A Lição de Anatomia...”, o seu primeiro degrau para a fama. Há quem diga que na tela “Saul e David” Rembrandt usou as feições de Espinosa para retratar David. O imaginário do pintor podia querer transmitir a ideia de considerar Espinosa como a pequenez que se agiganta à altura de destruir Golias e amedrontar Saul. A biblioteca de Espinosa era recheada da lucidez de Descartes e os três sulcaram a cultura e o mundo, cada um à sua maneira. Espinosa, o patrão do Panteísmo, pretendia combater as paixões com emoções geradoras de racionalidade. «Quem me dera que assim fosse…» disse Arnaldo para os seus botões. «Teria resolvido os problemas da minha vida, mas raramente somos o que desejamos ser». Espinosa era filho de mercadores portugueses fugidos à Inquisição e, por isso, Arnaldo tinha um fraco pelo seu legado histórico e filosófico. Nesta medida, encaixava-se bem no conceito de ser português: lamecha que baste, e derrotista até dizer chega. Ainda por cima gostava de fado.

Sem se demitir de olhar para o passado e bem menos dorido pelas artroses do que pela alma, Arnaldo levantou-se da secretária, deixou a escrita a dormitar, e foi olhar de perto os mosaicos de fotografias que decoravam as paredes do seu escritório. Karen sorria-se para a eternidade como se quisesse deixar impressa, no tempo, uma assinatura espectral de felicidade. Sempre era verdade estar gravemente doente e aparentava lograr saúde. Mais uma vez a vida fora cruel para ele e, só por isso, deixou de gostar da Holanda, em geral, e de Amesterdão, em particular.