sábado, 31 de dezembro de 2011

UM MUNDO SEM SÍMBOLOS?

Walter Cabral de Moura
(wacmoura@nlink.com.br)

 

          A recente decisão de um eurotribunal, reunido em Strasbourg, na França, de que a Itália não deve admitir ou tolerar, nas escolas públicas, a presença ostensiva de cruzes, crucifixos ou qualquer imagem que simbolize o cristianismo, é extraordinariamente rica em simbolismos.


          Lembremos que na Itália, talvez mais que em qualquer outro país do mundo, é muito forte a tradição católica, certamente em decorrência de ter sido em terras do império romano que surgiu a nova religião, na dominada e periférica Judeia, de onde mais tarde chegou à metrópole do mundo. Por longo período foi perseguida e menosprezada, até conquistar o establishment, por vontade do imperador Constantino que, cerca de 313 d.C., viu na cruz um signo de vitória contra seus inimigos.


          Ao substituir, nos seus exércitos, a tradicional águia, símbolo de Júpiter, pelo P (de pisces) inclinado, símbolo cristão, de longa perna a modo de um cajado, Constantino iniciou a maior revolução de um sistema de crenças de que a história dá notícia. Com o novo signo, realmente venceu todas as guerras. Os cronistas anotam que em alguns casos, graças ao terror que as novas insígnias imperiais infundiram nos soldados inimigos, que as associaram a poderes sobrenaturais.


          Trazendo de volta ao nosso século XXI esta pensata, deve ser dito que o local onde se reuniu o tribunal é também cheio de simbolismo: Strasbourg, ou Estrasburgo, já fez parte do império romano, mais tarde do sacrossanto império austro-húngaro, foi alemã e é francesa desde o fim da segunda guerra mundial. A partir de uma cidade que tantas vezes viu serem mudadas as fronteiras, um tribunal supranacional decidiu que um país além-fronteiras deve renunciar a uma sua tradição multissecular.


          A existência mesma de um tal tribunal é sobretudo símbolo, da Europa unificada em cuja direção pretendem caminhar os governos de 27 países do velho continente. A que ritmo não se sabe ao certo, por enquanto pode-se dizer apenas que em ritmo dissonante, inclusive em matéria econômica, como demonstram as crises dos PIGS – Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha. É certo que pouco a pouco se vai legislando sobre temas variados, da qualidade do café servido nos bares ao tratamento a ser dado a imigrantes, passando por disposições antifumo e também, como se vê, antissímbolos.


          O governo italiano teve prazo de três meses para implantar a medida, e sinalizar para o mundo que seu desejo de integrar-se à Europa unificada é maior que o apego a tradições culturais – entendendo-se aqui a religião, ou seus símbolos, como uma manifestação cultural, em uma acepção sociológica e não teológica – ou para descumpri-la, e sinalizar o inverso. Nessa hipótese, haverá um custo financeiro, materializado em uma multa, ela mesma também um símbolo, de poder, elemento associado desde sempre aos tribunais, que jamais gostaram de ver suas sentenças descumpridas.


          Dentro desse notável conjunto simbólico, aquele que entretanto mais me chamou a atenção é o que decorre da solicitação em si, feita por uma cidadã e acolhida pelo tribunal, indicativa da demanda por um espaço público sem símbolo algum, completamente impessoal. A princípio, a ideia parece boa. Lá fora já sofremos um bombardeio ininterrupto de símbolos de toda espécie, sobretudo comerciais mas também de outra natureza, que lutam pela conquista de nossas mentes e às vezes, audaciosamente, de nossos corações: nos anúncios, nas placas e letreiros, nos automóveis e ônibus, nas roupas e acessórios das pessoas, nas pichações das paredes, aqui, ali, acolá. Seria realmente bom haver um “paraíso”, um lugar livre de toda essa metralha que nos devora a vida e a alma aos pequenos bocados. O interior dos prédios públicos, ainda mais daqueles destinados a crianças, poderia bem se prestar então a ser esse locus amoeno.
          Ai de nós, contudo, frágeis mortais que somos: será isso possível? Proibidas as cruzes e crucifixos nas paredes e portas dos colégios, é de supor que estas deverão permanecer nuas, sem nada mais além de uma camada de tinta. Qualquer outro símbolo colocado sobre elas dará margem ao incômodo de alguém, que poderá também, com justiça, sentir-se afrontado em suas convicções íntimas. Suponhamos que se consiga chegar, mesmo na latina e efusiva Itália, a tal estado de neutralidade das paredes e muros das escolas públicas. Mas e quanto ao vestuário dos alunos e das outras pessoas que frequentam o espaço, ou aos símbolos que eles venham a portar em cadernos, pastas, mochilas ou outros meios quaisquer?


          Chegamos aqui a um impasse, a uma escolha a ser feita entre dois absurdos: um, o de supor que ninguém, nenhuma criança, adolescente ou adulto poderá mais portar ou usar qualquer símbolo, intramuros da escola pública. Outro, o de concluir que em um país de regime democrático, apenas símbolos religiosos sejam proibidos.


          A saída possível não nos leva muito adiante: é imaginar que estão liberados os símbolos quando exibidos por particulares, por indivíduos, cidadãos ou empresas, limitando-se a vedação a iniciativas e a propriedades do governo. O problema dessa solução, aparentemente tão justa e feliz, é que o governo existe como abstração somente nas doutrinas da ciência política, fora daí é feito por gente.


          O prédio da escola é público, mas os alunos, os professores, os funcionários, os diretores, os pais dos alunos, todos os que a frequentam são particulares pessoas. Se tivessem elas mesmas o direito de decidir sobre se na sua escola podem ou não ser colocados nas paredes crucifixos, cruzes, crescentes, estrelas de seis pontas, imagens de Buda, de Krishna, orixás, duendes, gnomos, fotos de times de futebol, de bandas de rock, enfim o diabo a quatro, resultaria daí muito melhor símbolo para todos os que esperam que o mundo seja cada vez mais um lugar de paz, de tolerância e de sensatez. O contrário, a delegação desse poder a um tribunal supranacional sinaliza para um desejo de utopia, de um mundo meio fantástico, sem símbolos de espécie alguma. E o que é a cultura humana senão um formidável e intrincado conjunto de símbolos?


N.B.: Esta reflexão foi feita em junho, desconheço os desdobramentos posteriores da questão, que não mais vi divulgada na mídia.