domingo, 14 de novembro de 2010

PRODUZINDO DEUSES


Padre Beto
www.padrebeto.com.br


Conta uma antiga lenda que três aprendizes de demônio deveriam descer à terra para fazer um estágio. Antes do início deste, os três apresentaram seus projetos para o grande mestre do mal, Satanás. O primeiro aprendiz disse ao grande demônio: "Eu tentarei convencer as pessoas de que Deus não existe!" Satanás interrompeu a exposição do aluno e, um pouco irritado, comentou: "Você não irá contribuir muito conosco, pois os seres humanos possuem uma tendência inconsciente em acreditar em Deus. Seu projeto não é original e você não terá sucesso com ele." O segundo aprendiz expôs, então, suas intenções: "Eu irei tentar convencer as pessoas de que Jesus Cristo não existiu e os evangelhos são uma mentira." Satanás, porém, argumentou: "Pura ingenuidade! Você nunca conseguirá fazer com que as pessoas deixem de acreditar nas palavras de esperança de Jesus." Por fim, o último aprendiz apresentou o seu projeto: "Eu irei convencer as pessoas de que elas conhecem a Deus, tentarei fazê-las acreditar que a imagem que possuem de Deus é a verdadeira!" "Perfeito!", afirmou Satanás com entusiasmo, "aqui está uma idéia originalmente demoníaca. Vá à terra e reforce a idéia de que os homens conhecem a Deus e quanto mais depositarem sua certeza na imagem que possuem de Deus, mais frustração encontrarão na dinâmica da vida."

Já na antiguidade, um dos maiores sofistas gregos, Pródico, dizia que os deuses são expressões dos sentimentos humanos, principalmente de sua gratidão. Para o filósofo, os seres humanos projetam no sagrado tudo que seja produtivo e de importância, como os Egípcios costumavam fazer com o rio Nilo. Outro sofista, Diágoras, inflamava a discussão afirmando que a idéia de uma justiça divina contradiz a realização da justiça humana. No transcorrer da história do pensamento, muitos filósofos criticaram severamente não a possibilidade da existência de um ser transcendente, mas as visões religiosas sobre este. Em sua maioria, as críticas voltaram-se contra dois aspectos: a superstição, um excessivo receio diante dos deuses, e o poder teológico-político institucional das religiões oficiais.

No século XIX, por exemplo, o filósofo Feuerbach analisa a religião como uma forma eficaz de alienação. Este processo teve seu início na necessidade dos seres humanos compreenderem seu mundo. Em busca da explicação da realidade procurou-se encontrar a origem da vida. A resposta mais simples foi a existência de um ser superior. Com o passar do tempo, os seres humanos depositaram neste ser superior diferentes poderes entregando a ele, por fim, o domínio sobre a realidade e sobre o destino da vida humana. Para Feuerbach, a alienação religiosa é um longo processo através do qual os seres humanos não se reconhecem no produto de sua própria criação, transformando-o num outro (alienus). Esta alienação religiosa se expressa a partir do momento em que criamos uma imagem demasiadamente precisa de Deus e nela transferimos não somente sentimentos humanos e capacidades que estão em nós mesmos, mas também o rumo de nossa própria história. Seguindo esta mesma linha de pensamento, Karl Marx explica que pessoas fazem a religião e a religião faz pessoas. A religião seria uma invertida visão de mundo, através da qual o ser humano transfere para Deus todas as suas potencialidades e espera dele a transformação da realidade que o próprio ser humano pode realizar. Marx conclui que esta vivência da religiosidade funciona como um verdadeiro ópio do povo. "Se há um Deus, o ateísmo deve revoltá-lo menos que a religião" (Edmond de Concourt).

Nós, seres humanos, vivemos em um universo do qual ainda não conhecemos seus limites. Basta ler um bom livro de astronomia para se ter uma idéia das fantásticas dimensões entre milhões de galáxias espalhadas pelo imenso cosmo. Por outro lado, com o avanço da tecnologia e das diferentes áreas das ciências, o ser humano compreende cada vez mais a rica estrutura de sua própria natureza, desde a descoberta do inconsciente até a leitura de nosso DNA. A fé em Deus, porém, não pode estar desligada deste processo de conhecimento da razão humana. Ignorar séculos de evolução e continuar acreditando em Deus como se fossemos homens da Antiguidade ou da Idade Média européia é sinal de falta de cultura, preguiça mental ou medo diante da vida. A imagem do "velho de barbas brancas" que possui sentimentos humanos, criou o universo em sete dias e observa constantemente nossos atos acaba sendo um obstáculo para o homem esclarecido do século XXI viver sua liberdade em criar e recriar seu universo e aprofundar seu relacionamento com o próprio Deus. Enquanto estivermos projetando nossos aspectos negativos e positivos na racionalidade que deu a origem ao universo e utilizando-a como consolo para nossas carências deixamos de nos relacionar com o verdadeiro Deus. "Os homens criam seus deuses à sua semelhança" (Aldous Huxley). Uma relação madura com Deus só pode ser construída através do reconhecimento de sua imensa grandeza, de nossas infinitas capacidades e de uma mútua autonomia, seja de Deus em relação aos homens e dos homens em relação a Deus.