segunda-feira, 31 de maio de 2010

O CAMELO, O LEÃO E A CRIANÇA



Padre Beto
www.padrebeto.com.br


Em uma cidade medieval, vários pedreiros trabalhavam na construção de uma grande catedral. Certo dia, um estranho que acabara de chegar naquele povoado aproximou-se dos trabalhadores da grande obra e perguntou o que eles estavam fazendo ali. "Você não está vendo...", respondeu com muito mau humor um dos pedreiros, "eu estou lutando pela minha sobrevivência". Um outro trabalhador que estava por perto imediatamente completou com muito suor, mas um sorriso no rosto: "Eu estou construindo uma belíssima catedral!"

Na verdade, os dois pedreiros deram ao estranho uma resposta correta. Porém, cada um possuía sentimentos e pensamentos muito próprios diante de um mesmo fato. Os dois edificavam a mesma catedral, mas construíam realidades diferentes. Dependendo da forma como vemos, compreendemos e descrevemos a nossa realidade acabamos por transformá-la e estabelecemos para ela determinados horizontes. Segundo o filósofo alemão Nietzsche, o espírito humano pode ter três comportamentos diante dos valores e das regras morais impostos pela sociedade. Frente às imposições sociais, o ser humano pode se tornar semelhante a um camelo. Ele aceita todas as regras e as suporta de cabeça baixa e em silêncio como um peso que deve ser carregado. O ser humano pode, porém, se comportar como um leão. Motivado por seus desejos interiores (eu quero!), o ser humano pode revoltar-se contra as imposições da sociedade e lutar ferozmente contra o dragão dos valores (dever ser). Por fim, o espírito humano pode reagir diante das regras morais com a liberdade de uma criança. Ele as compreende como brinquedos que podem ser manipulados para a sua diversão e seu bem estar.

As três posições reveladas por Nietzsche não se manifestam simplesmente diante das regras morais, mas podem caracterizar o próprio viver de um ser humano. Muitas pessoas encaram a vida com uma terrível resignação. Através de uma educação moral e religiosa podemos ser levados a um comodismo e a uma passividade diante de nossa condição humana. A idéia da existência de um destino ou de que Deus coloca o ser humano à prova através da dor pode fazer com que nos acostumemos com as dificuldades da vida, muitas delas frutos de estruturas econômicas, políticas e sociais, ou seja, geradas pelo próprio ser humano e passíveis de serem transformadas. A vida passa a ser um vale de lágrimas no qual o sofrimento deve ser carregado como um peso necessário. As alegrias passam a ser absorvidas pela esperança de que um dia toda a dor desta vida será recompensada na eternidade. "Se encara o sofrimento e o desprazer como algo nocivo e merecedor de aniquilamento ou como um defeito da existência, então torna-se evidente que este indivíduo abriga em seu coração (...) a religião do comodismo. Como estas pessoas sabem pouco a respeito da felicidade humana" (Nietzsche). Em contrapartida, somos, muitas vezes, tomados por uma purificante inconformidade diante das situações da vida. Esta pode nos levar a uma revolta. "Para se conquistar a liberdade e para expressar um santo "não" diante dos compromissos é necessário a força de um leão" (Nietzsche). O protesto contra as dificuldades da vida pode ser um remédio rápido e eficaz, mas por mais fortes que sejamos não deixamos de sofrer com as conseqüências de uma agressiva cirurgia na realidade. Entre o conformismo do camelo e a agressividade do leão, porém, encontramos a liberdade da criança. Esta surge da consciência de que em nossas mãos está a caneta com a qual escrevemos nossa história. Atingimos a verdadeira liberdade da criança quando compreendemos também que a única coisa absoluta é a vida humana, todo o resto (convenções e valores morais, estruturas econômicas, políticas e sociais...) é relativo, passível de mudança e só possui sentido se estiver a serviço da nossa felicidade. Assim, encaramos as dificuldades da vida, por exemplo, como se fossemos jardineiros. Por suas raízes, uma planta pode parecer estranha e desagradável, mas aquele que a conhece e acredita em seu potencial pode fazê-la florescer e frutificar. Na vida, em uma fase de raiz, surgem emoções e situações difíceis que, no entanto, podem resultar, depois de um cultivo cuidadoso, em grandes êxitos e alegrias. Para Montaigne, a arte de viver está em se fazer bom uso de nossas adversidades. Nem tudo que nos faz sentir melhor é bom para nós. Nem tudo que magoa pode ser ruim. Podemos ver em uma atividade ou na própria vida um mal necessário ou uma oportunidade de aprender algo novo. Se temos uma dificuldade podemos lastimar, reclamar, ou então carregar este peso, não como expressão de nosso comodismo, mas sim como uma oportunidade de fortalecer nossos músculos. "Algo como o mau tempo, na verdade, não existe. Existem, sim, vários tipos de bom tempo" (John Ruskin).