terça-feira, 22 de dezembro de 2009

AS CAMADAS DO TEMPO

Djanira Silva
djaniras@globo.com
http://blogdjanirasilva.blogspot.com/


Estou com o pensamento desembestado. De repente, as dores do parto. Despenco ladeira abaixo sem governo e sem juízo, em busca da palavra. Às vezes, uma, uma só, deixa-me assim. Será que é mesmo uma, ou o somatório delas, calado e mascarado que me impede de pensar? Está claro que o mal é meu principalmente quando duvido de tudo e penso que acreditar nas pessoas é um risco e no amor é morrer nos enganos.
Sinto-me um ser em desconstrução. Matéria orgânica que se decompõe a cada dia, nas rugas, nas dores, nas mágoas.
Matéria que alimenta a natureza, quer seja no mar, na terra, que se desfaça no ar, ou dentro da alma.
Esqueço? Ou não esqueço? Sei lá.
As dúvidas são os caminhos das certezas. Tento ficar em paz até que a morte me separe, ou rimar feito quem faz versos. Na verdade sinto mesmo vontade é de tacar fogo em tudo quanto já escrevi e apagar do pensamento esta mania de falar de tudo sem saber de nada. Já conversei com Deus e disse a ele, Senhor, acho que não escolhi ser eu, assim como Judas não escolheu ser traidor, nem Pedro covarde nem Tomé descrente. Se cada um cumpre um papel, abençoe minha desobediência.

Por que escrevo? Quem sabe? Só sei que a cada sentimento modifico as palavras. Transformo-as em arma ou em flores.
Às vezes nem reconheço o que digo. Pouco importa se são crônicas, contos, novelas ou romances. Importa sim, que não me cale nunca e esteja sempre insatisfeita. Se alguém gosta do que escreve, deve ter perdido o juízo dentro de alguma palavra. Há muita gente “realizada” por aí. Há até quem se julgue imortal.
Conhecemos tão pouco a profundidade dos nossos semelhantes. Infelizmente não podemos desavessá-los para saber das mazelas que cada um carrega. Assim, ficamos do lado oposto, na leveza do silêncio na fatuidade das palavras, sofrendo de uma insegurança sem ao menos saber quem somos.
Da árvore, comemos o fruto, não sabemos dos males das raízes. Falamos de agressões e violência. Esquecemos, no entanto, de que a pior das agressões é matar na alma as esperanças de alguém.
Meu primeiro mundo foi o das revelações. Um mundo simples onde os dias tinham sabor de festa.
O segundo, foi o das sensações, das descobertas, das coisas proibidas. De um corpo carregado de segundas intenções.
Agora, neste terceiro mundo, fujo todos os dias, feito criança trelosa em busca de um tempo em que a que a felicidade estava ali bem perto, na simplicidade de um pôr de sol, nas serenatas em noites de lua cheia, nos namoros escondidos, na desobediência de ser feliz. Era tudo tão simples e tão fácil. Às vezes penso que mudei de mundo. Já não ouço os sons que encheram de alegria a minha vida. Não mais repicar de sinos nem canto de aves nas goiabeiras, nem o som das Ave-Marias no final das tardes. As camadas do tempo se sobrepuzeram sobre mim e quase não me reconheço.

À noite, um silêncio cansado e poluído se espalha por entre as luzes que imitam o sol.
Sinto falta de uma rara felicidade gravada nos passos da minha inocência. E, de vez em quando, brinco de ser feliz, abro um parêntesis para a saudade.
Obs: Texto retirado do livro da autora - Morte Cega -

Obs: Imagem enviada pela autora.