terça-feira, 24 de novembro de 2009

FOLHAS QUEIMADAS

Djanira Silva
djaniras@globo.com
http://blogdjanirasilva.blogspot.com/



Foi exatamente assim, do jeito que vou lhe contar.
Nunca se entregou por inteiro, nem pude imaginar quanto sofrimento estava preso nas malhas do seu silêncio. Sua alma sempre fugiu de mim. Quando falava, falava pouco, com dificuldade, frases curtas, significativas: sou uma mulher feita de sonhos e de desejos. Antes de terminar, estava cansada, ofegante, como se estivesse voltando de uma corrida. Depois, fechava-se num silêncio que durava horas, dias, meses. Nunca deixou de ser a menina dos meus olhos, nem mesmo quando se escondia nos espelhos à procura do antigo corpo examinando mãos e braços em busca das pegadas do tempo impressas na pele, agora, envelhecida..
Aconteceu assim, não digo de repente porque nem mesmo a morte acontece de repente. Quando chega já estava a caminho.
Algum desgosto? Pode ter sido, penso, não sei. Várias vezes, tentei alcançá-la. Impossível. Entrincheirada nas lembranças, não parecia me ver. E te escutava? Também não sei. Olhava-me com um olhar de quem apenas reage aos sons.
Sonho maldito, excomungado, amortalhado em sorrisos e remorsos, disse-me um dia, no seu cansaço. Lamentou conhecê-la? Não. Como poderia se a amava? E ela, sabia?
Sempre soube. Indiferente, se deixou amar.Uma noite, partindo ao meio o seu silêncio, perguntou? Posso ir?Não, eu disse. Calou-se e, por muito tempo, não voltou a falar. Tentei prendê-la ainda, por algum tempo. Precisava entender seus pensamentos, iluminados pela força invasora de uma luz que acendia seus olhos nesses momentos. Precisava devassar seus sentimentos em busca de um sinal que me conduzisse à verdadeira causa dos seus remorsos. E quem lhe contou a verdade? Ela, ela mesma. Como? Nesta carta: Salva-me, nestes momentos obscuros, uma pequena luz que ainda teima em permanecer acesa – a sombra da lamparina que iluminou minha infância e desenhou minha inocência no branco das paredes.
Folheio minha alma e as páginas queimadas pelo tempo ameaçam se desfazer com a dor de mais uma lágrima chorada por lembranças que não terminam de morrer.
Nunca te disse nada. Guardei por tanto tempo um amor que eu deveria ter vivido um grande amor que eu trouxe do passado feito de luxúria e de desejos. Não pude dizer a verdade e, assim vivemos nestes ventos parados, nestas águas turvas e nos caminhos destorcidos das enganações. Agora, apenas a luz da infância permanece acesa, imaculada, mergulhada numa penumbra onde só o passado me parece real. Quero partir.
Nunca te disse nada e nada apagará o amor que não consegui viver. Há sempre uma pergunta.Uma pergunta tão simples que me faço quando os silêncios se digladiam desesperados na confusão das escolhas: Por quê?
Naquele dia eu a deixei partir..


Obs: Imagem enviada pela autora.